segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O CAOS DO JOGO

Coloco aqui um pequeno texto retirado do livro do professor Paulo Cunha e Silva, chamado O lugar do corpo - Elementos para uma cartografia fractal - Editora Instituto Piaget - 1999 - Portugal.

A principio este livro não é sobre futebol, porém coloco este pequeno texto e pergunto: Este livro também não é sobre futebol?

É uma das referências bibliográficas do professor Jorge Maciel em seu livro, inclusive citado muitas vezes e até mesmo entrevistado pelo mesmo na sua obra. Muitos dos termos e conceitos citados na entrevista com Jorge Maciel podem ser vistos e entendidos mais a fundo neste livro.

Grande abraço a todos.
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O caos do jogo

Na perspectiva de Elias e Dunning o jogo é um acontecimento que decorre na convergência de várias polaridades. Destacam-se as seguintes: "a polaridade global entre duas eguipas ou indivíduos; a polaridade entre ataque e defesa; a polaridade entre cooperação e tensão entre duas equipas ou indivíduos; a polaridade e tensão dentro de cada equipa; a polaridade entre o controle externo sobre os jogadores e o controle flexível que eles próprios sobre si exercem; a polaridade entre o interesse dos jogadores e o interesse dos espectadores; a polaridade entre o interesse dos jogadores e espectadores, por um lado, e o interesse das autoridades e dos legisladores, por outro; a polaridade entre aborrecimento e violência (etc.)" (Dunning, 1994).

Juntam-se a estas polaridades, de natureza psicossociológica, as polaridades de natureza biológica que têm que ver com a condição física que os jogadores apresentam e, ainda, as múltiplas polaridades que se abrem dentro de cada polaridade.

O jogo, além de ser um acontecimento "particularmente sensível às condições iniciais", ou seja, um acontecimento caótico para cada polaridade, sendo uma acontecimento multipolar vê agravada essa sensibilidade, até porque, como refere o autor, as diferentes polaridades são interdependentes -"(..) no sentido em gue pequenas alterações em qualquer uma delas podem ter efeitos ramificados em todas as outras" (ibid.).

De certa forma, podemos dizer que o jogo se comporta como uma série fractal muito apertada, um concentrado de fractal. Cada polaridade introduz um nova bifurcação que entronca na árvore fractal, mas como as polaridades acontecem numa vizinhança muito íntima, ou mesmo simultaneamente, deparamos com uma árvore que nasce totalmente ramificada.

Ao admitirmos um joqo como um sistema dinâmico não-linear, ou seja, um sistema cujo comportamento varia não-linearmente com o tempo, admitimos facilmente que o resultado depende da forma como se joga, como se vai jogando. Mas esta dependência, por sua vez, altera as regras do jogo, porque o contributo da incerteza, do acaso, se incompatibiliza crescentemente com qualquer regra.

Se, por hipótese, fosse possível propor uma equação que acompanhasse o desenvolvimento do jogo (e sendo esta uma equação não-linear, como é o caso da equação de Navier-Stokes para a mecânica de fluidos), a solução só faria sentido para o momento imediatamente a seguir ao momento da entrada dos dados (von Neumann, 1963). Porque jogar, assinala Bateson, é mais do que "um acto ou uma acção (...), é uma estrutura para a acção" (1987, p. 126). É a "bacia de atracção" dentro da qual se probabilizam as ocorrências. Assim, a previsibilidade terá a oportunidade do instante. Para os instantes sequintes a imensidão de soluções possíveis e a complexidade do cálculo desmobilizariam o matemático mais dedicado. Como diz Gleick, "(...) analisar o comportamento de uma equação não-linear é como avançar através de um labirinto cujas paredes se rearranjam a si mesmas por cada passo que é dado" (1989, p. 50).

É claro que não existe treinador (pelo menos treinador determinista) que no seu íntimo não pretenda ser o "deus de Laplace" - conseguir prever com uma certeza infinitesimal a evolução do jogo, controlar esse sistema multivariável. Por isso, talvez ele preferisse substituir a variabilidade pela estereotipia, na expectativa de que as atitudes dos seus jogadores fossem previstas e articuladas com a máxima certeza, de que as propriedades topológicas do movimento que eles manifestam fossem as menos variáveis.

Ele deve, no entanto, aperceber-se que a máxima estereotipia, correspondendo à mínima variabilidade, corresponde, também, à mínima adaptabilidade - que é a característica definidora de habilidade (como performance motora) (Newell et ai., 1993). Dessa forma, "o novo" que jogo proporciona seria sempre um desastre para o jogador.

É ao treinador, e neste contexto, mais vantajoso admitir que tal aspiração, em tempos de caosificação, é difícil de concretizar, e mais sequro será situar as suas estratégias dentro do "bacia de atracção" que as leis do caos definem.

"O aleatório é um companheiro da certeza" (Conde, 1993, p. 75). O que a evolução biológica com as suas estratégias variantes, como metáfora da evolução do jogo, demonstra à saciedade: há uma interacção permanente entre a mutação espontânea e a selecção natural (Arber, 1994), entre a jogada e a sua eficácia, o que define a natureza fractal da alteração evolutiva. A evolução biológica não progride numa direcção específica, vai progredindo, como o jogo, na medida da eficácia das suas soluções, das sua jogadas. Para mais, sendo o jogo uma sequência de sequências, um tempo que se funda no cruzamento de vários tempos, é de admitir, com Bateson, que essa "(...) sequência só possa ser joqada enquanto retiver alguns elementos criativos e inesperados. Se a sequência for totalmente conhecida, trata-se de um ritual (...)" (Bateson, 1987, p. 124).

O facto da sequência do jogo decorrer numa perspectiva caológica permite utilizar o jogo para entender outras sequências caóticas. É o que se passa quando em genética molecular se recorre a uma técnica designada por "representação do jogo do caos" (CGR - "Chaos Game Representation").

Essa técnica permite reconhecer padrões nas sequências nucleotídicas de determinados genes através da análise fractal dessas sequências, isto é, a partir da verificação de permanências na exibição da variabilidade sequencial (Dutta e Das, 1992). Por isso, se esta nova abordagem fornece uma perspectiva holística da sequência visual do DNA bastante diferente do tradicional arranjo linear dos nucleótidos (Hill et ai. 1992), também demonstra a especificidade local de determinados padrões (Jeffrey, 1990).

O jogador é uma entidade "hermético-dinâmica", para usar a expressão de Conde (1993, p. 72), pois oscila entre atitudes de "fechamento" e de "abertura". Ele desdobra o território (o campo) em "pregas" gue se desdobram em "pregas" - no sentido leibniziano (Leinbiz, ed. 1967; Deleuze, 1988) - e preenche esta dimensão fractal com a criatividade do gesto, da sua actividade motora. Ele guebra a "temporalidade linear" e faz daguele tempo um tempo de múltiplos possíveis. Além disso, estabelece uma homotetia com a sua eguipa. Há uma autossemelhança (pelo menos nos propósitos) gue ultrapassa as escalas: todos os níveis de subcorpos que constituem o corpo da eguipa estão empenhados no mesmo objectivo: ganhar.

Uma eguipa é um corpo complexo em qualguer dos níveis de organização abordados: do subcelular, passando pela actividade motora, até à intersubjectividade em campo. É vantajoso gue os processos de treino se habituem a conviver com a variabilidade gue resulta desta circunstância, e a fazer dela uma força suplementar, em vez de a tentar esconjurar. 0 elemento relacional, comunicacional, é mais importante do que as mais valias individuais, e esse elemento só se manifesta num quadro que ultrapasse formatos impositivos.

Mas depois de tudo isto é também óbvio que se não houvesse qualguer coisa que ligasse o jogo a um território de possíveis previsíveis, deixaria de fazer sentido insistir-se e investir-se no futuro, na preparação de uma eguipa. No fundo, o treinador sabe que, embora não seja o deus de Laplace, há um atractor que condiciona este sistema multipolar, multivariável, dinâmico, não-linear, complexo, fractal, a um território de confiança, legitimando os seus investimentos. E a última polaridade que aqui se joga é aquela que se situa entre o caos e o determinismo.

Será concerteza por isso que Ito e Gunji ao procurarem uma automação celular que mimetizasse a vida a designaram por "Jogo da Vida" (1992). De facto a vida joga-se na fronteira entre o caos e a ordem. É aí que se encontra o desequilíbrio permanente capaz de criar estrutura a partir dos mecanismos de auto-organização dos sistemas complexos. É pois provável que na vida, como no jogo, a possibilidade de estratégias e escolhas tácticas esteja limitada a uma organização multifractal e a uma atracção caótica que restringe as opções evolutivas e indicia um princípio universal (ainda que um princípio fluido, um princípio de princípios) para a morfogénese dos sistemas naturais (Blazsek, 1992) - e isto da vida ao jogo, ou seja, da vida à vida.

Agora já podemos dizer que o jogo é um dos exemplos mais eloquentes do "caos determinista".
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domingo, 30 de outubro de 2011

O COLETIVO

"Qual é a definição de insanidade? É fazer sempre a mesma coisa e esperar um resultado diferente. E se for esse o padrão, a maioria de nós não é são. Mas não ao mesmo tempo. E, baseado nisso, nós confiamos. Mas esse meio de vida resiste se mais e mais pessoas forem insanas ao mesmo tempo. Torna-se como Gordon disse: sistêmico. Como câncer.


O que acontece, então?

Como eu disse, a mãe de todas as bolhas foi a explosão cambriana. E aconteceu por acaso a mais de 500.000.000 de anos.

Os cientistas dirão que foi sem precedentes, que aconteceu num estalo de dedos. E disso, de repente, o mundo tinha milhões de novas espécies. E daí nós nascemos. A raça humana. Agora, nesse sentido, as bolhas são evolutivas. Elas matam o excesso, reúnem o rebanho, mas nunca morrem, apenas voltam em formas diferentes. Quando explodem, dão à luz um novo dia. Sempre gerando mudanças. "

Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme
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Recentemente fiz uma apresentação sobre organização de jogo, e algumas coisas que envolvem isso na minha concepção de futebol e ao final fui questionado sobre o que achava dos treinos coletivos.

Minha resposta foi basicamente esta:

Desde que seja um coletivo com critérios, podemos fazer.

Pois vou explicar o que seria isso. Existe aqui no Brasil uma tendência ao "coletivo", que é para muitos o mais especifico dos treinos, pois é o que retrata melhor o jogo. De fato, em algumas metodologias isso é verdade, como por exemplo, na metodologia convencional.

Em treinos integrados o coletivo deixa de ser tão "especifico" quanto é para o treino convencional, pois neste existem treinos em espaço reduzido que promovem junto com a especificidade técnica e tática (quando solicitada no exercício, porém normalmente esta dimensão, nesta metodologia e neste tipo de exercício não é levada em conta, sendo a separação das equipes normalmente feita de forma grupal, sem preocupações setoriais ou intersetoriais).

Algumas características do coletivo convencional:

- 11 contra 11;- Tempos longos retratando o tempo real de jogo (2x35, 2x40, 2x45 - 1x45, 1x50, 1x60 minutos);
- Regra normal de jogo, tanto em bola rolando quanto em bola parada;
- Espaço de campo total;
- Número de toques na bola liberado;
- Titulares x Reservas;

Estes são alguns pontos mais valorizados nos coletivos clássicos. Estes traços são de fato o retrato do "jogo oficial", pois o coletivo tem essa idéia mesmo, jogar como se irá jogar no jogo, e os jogadores pelo menos nas culturas que tive contato têm uma grande necessidade de realizar estes coletivos semanalmente. É como se fosse um teste semanal para eles, uma avaliação para sentir o seu modo atual de jogo, seu rendimento, e para o treinador o coletivo convencional passa a ser um tipo de feedback da equipe na semana.

O problema no caso do coletivo abordado acima esta relacionado a algumas consequências que surgem neste tipo de treino, e estão situados nas seguintes variáveis:

- Propensão a algo;
- Acumulação de fadiga de jogo;
- Baixa qualidade;
- Baixa Intensidade;

PROPENSÃO A ALGO:

Metodologicamente o princípio das propensões nos possibilita contextualizar o exercício para solicitar o aparecimento de determinadas coisas mais do que outras, ou seja, estar mais propício a algo. O jogo, em geral é de fato uma forma de avaliação qualitativa e até quantitativa sobre o aparecimento destas coisas, que através da propensão levamos aos treinos e treinamos.

Portanto existe uma lógica em fazer coletivos para tentar perceber se esta ou não acontecendo estes comportamentos idealizados pelo treinador. O problema é que o coletivo tradicional pelo seu tempo de duração, pelos seus confrontos em níveis muito desiguais, e pela contextualização não idêntica à competição (pois o lado emocional, a torcida, o stress não estão tão presentes) acabam sendo um pouco "enganadores".

Enganam, pois dentro da exigência baseada nestes elementos o jogador consegue sucesso sem a necessidade de na maioria das vezes estar no seu limite máximo de desempenho, o que acaba gerando uma estabilização, muitas vezes influenciada pela fadiga, que é gerada pelo excesso de tempo do coletivo e pela oposição de menor qualidade sem exigência de competição.

Outro detalhe é a participação, que se reduz muito pela relação com o espaço de jogo, que neste caso tende a solicitar pouco do jogador.

ACUMULAÇÃO DE FADIGA DE JOGO(S):

Este é outro ponto chave, a acumulação de fadiga que acontece através da não total recuperação do jogo anterior, em conjunto com a realização deste coletivo, mesmo que este seja colocado num dia em que possivelmente tenha ocorrido a total recuperação geral do organismo dos jogadores (+ ou - dependendo da individualidade do atleta em termos de recuperação). Ou seja, até mesmo para quem respeita os 4 dias de recuperação para jogar um novo jogo, a utilização deste tipo de coletivo pode ser prejudicial pela necessidade de recuperação para o próximo jogo, que se feito por exemplo na quinta-feira, terá apenas sexta e sábado, para voltar a jogar domingo, isso em uma semana completa de treinos, sendo que por jogarem longos tempos continuamente, mesmo que em menor intensidade, a tendência é uma depleção energética muscular e hepática elevada, além de grande possibilidade de acumulo de micro-rupturas pela quantidade de tempo de solicitação, que irá influenciar o próximo treino em termos de qualidade e intensidade assim como o treino seguinte e provavelmente deixará resíduos elevados de fadiga para o próximo jogo.

O mais interessante é o ciclo que se passa a partir daí, pois demonstrando sinais de cansaço, inclusive precoce, o jogador que é avaliado em meio ao coletivo qualitativamente, ou por colocar para a comissão técnica o seu cansaço, é submetido depois a mais treinos físicos, para melhorar sua suposta condição física, sendo que na verdade o que lhe falta é exatamente descansos passivos, e mais treinos de recuperação talvez para poder voltar a seu estado de supercompensação digamos ou estado de exaltação para uma nova solicitação de qualidade.
 
Sendo que ainda estou sendo otimista na colocação do dito coletivo na quinta-feira, o pior é quando ele ocorre na sexta-feira, dia em que se está bem perto do próximo jogo, ou na terça-feira, dia em que se esta bem perto do último jogo, e nos dois casos a fadiga certamente estará se acumulando no organismo da equipe.

AS LESÕES:

O cansaço adquirido por este tipo de treino normalmente leva a lesões no final de diferentes gravidades, bem como frequentes discussões, brigas, e outros distúrbios causados, normalmente no fim do treino, pela baixa recuperação que acontece neste tipo de solicitação.

Minha experiência empírica me mostra que normalmente as lesões de treino ocorrem exatamente nos coletivos, e com grande tendência aos 15 minutos finais, exatamente pela mistura de fadiga e discussões, daí surgem muitas torções de tornozelo, tostões pelo timing errado de entrada no lance e até mesmo rupturas ligamentares.

BAIXA QUALIDADE E INTENSIDADE:

Neste tipo de treino, à qualidade tende a ser menor primeiro pelos confrontos, que muitas vezes são marcados por titulares x reservas (principalmente em equipes que buscam definir isso bem), o que proporciona aos titulares, que normalmente possuem maior qualidade, principalmente em clubes de baixa faixa aquisitiva, uma certa despreocupação, uma baixa intensidade até, que querendo ou não, ajuda a habituar o corpo a este tipo de esforço mais contínuo e de baixo nível competitivo (algumas equipes até o fazem sem o uso de caneleiras, com agressividade baixa, o que na competição oficial não ocorre), que se torna mais agravante por ser contínuo com maior dominância aeróbia, mais do que o jogo oficial, que terá que obrigatoriamente ser no máximo, e este máximo terá que ser em dominância anaerónia alática e até lática, por mais que em um contexto contínuo e consequentemente também aeróbio.

Portanto eu acredito que esta solicitação sub-máxima (sendo otimista) de longa duração não ajuda na manutenção da qualidade, mesmo que o treinador faça intervenções em alguns momentos, metabolicamente o treino tende a baixar demais o rendimento na parte final. Isso explica o motivo de algumas equipes levarem tantos gols neste momento do jogo.

Frente a estes detalhes, o coletivo que parece se for feito com estas intenções e e construção, tende à ser um pouco contra producente para a equipe, tanto "na hora" quanto "no acumulo" de fadiga que ajuda a elevar.

Portanto vou colocar uma situação diferente, em termos de coletivo. Vejamos:

Alguns objetivos:

-Criar situação de jogo em Coletivo 11x11;
-Treinar determinados princípios e assuntos tratados em menor complexidade na semana (antes), em situação mais complexa;
- Evitar a fadiga acumulada através das pausas;
- Manter a hidratação da equipe;
- Manter à qualidade através de orientações e ajustes nas pausas;

Início normal, 11 contra 11, em um treino de uma hora e meia, ou 1:45 por exemplo (isso é variável de acordo com categorias e competições):

Após aquecimento (+ou- 15 minutos) e objetivos propostos inicia-se o coletivo:


Ao fim de 10/15 minutos, acontece a primeira pausa. Nesta valoriza-se intervenções relacionadas aos objetivos que foram propostos nos primeiros 15 minutos, isso depende de cada situação, de cada equipe.

Após isso, cerca de 2 ou 3 minutos, inicia-se um exercício diferente:, podendo valorizar os mesmos objetivos, ou podendo modificá-los, abaixo um exemplo:

Situação de 11 contra 1 - Tiro de meta adversário. Neste exercício cada equipe realiza a situação em um dos lados do campo, gerando determinados comportamentos e conclusões, previamente propostas pelo treinador.
Após 3 à 5 minutos, inicia-se a segunda parte do coletivo, em jogo formal novamente, podendo sofrer ou não mudanças nos objetivos, e até mesmo nas regras do coletivo, como por exemplo o jogo em dois toques.

10/15/20 minutos depois, pausa-se novamente o coletivo. Hidratação e inicio a mais um exercício, que pode seguir a mesma linha do primeiro, ou modificar, depende do que se busca para o dia. Abaixo coloquei um exercício que valoriza a zona pressionante, em que o adversário fica estático, porém aberto no campo, de forma posicional, e os jogadores da outra equipe buscam uma pressão com o bloco todo de acordo com o jogador com bola, pressionando, fechando linhas e compactando de acordo com a recepção da bola.


Manutenção do bloco de acordo com a posição da bola.


+ou- 5 minutos depois se inicia o terceiro tempo de coletivo, onde se pode objetivar os princípios treinados no exercício anterior, tendo mais ou menos a ver com o que já foi solicitado ou não, isso vai de cada contexto.

15 minutos após, pausa-se novamente o coletivo, e ai pode-se fazer um novo exercício, ou somente repor energia com repositores hidro-eletrolíticos, ou somente entrar em orientação e intervenção do treinador, bem como alongamentos, porém, com algum tempo de recuperação e reorganização.

15 minutos mais de jogo, e termina-se o coletivo, ao total com dois tempos de 30 minutos, mais 20 minutos de recuperação com exercícios, hidratação, orientação ou alongamentos.

Vale salientar que o tempo não é fixo, e é interessante seguir uma pontualidade no que diz respeito a totalidade do treino, portanto o tempo final pode ser menor ou maior, depende do que aconteceu antes, do que foi exigido antes, tentando fechar dentro do previsto, ou até mesmo antes, mas não depois.

Grande abraço.
Luis Esteves
la_futeboll@hotmail.com

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

CONVERSAS SOBRE FUTEBOL - JORGE MACIEL - 3ª PARTE

3ª e última parte da entrevista com o professor Jorge Maciel.

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36. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da comunicação no dias da semana, faz sentido comunicarmos com os atletas de forma diferente a cada dia, por exemplo, terça-feira intervenções mais relacionadas a correções individuais, gestuais, quarta-feira ( em exercícios de maior choque como 3x3 , 4x4) intervenções mais agressivas etc..

Jorge Maciel: Isso vai de encontro a uma das questões anteriores. E eu respondo que a forma de comunicar também faz parte da arte. No entanto, compreendo a pergunta, pois poderá haver alguns aspectos que devo ter em consideração, mas muito pouco ao nível da forma e muito mais ao nível do conteúdo. Isto é, em função das prioridades que estabeleço para a sessão de treino a minha intervenção deverá, lá está, ao nível do conteúdo incidir dominantemente nesses aspectos sem que eu perca a sensibilidade para intervir em função do que está acontecer e como tal se assim se justificar intervir em função de aspectos que à partida não havia ponderado, mas que aconteceram e mereceram essa atenção e intervenção da minha parte. Como o faço, isso não acho muito relevante, sobretudo, não acho relevante que a forma de comunicar seja estabelecida á partida. Isso leva a uma teatralização e snobismo que são bem visíveis no modo de intervenção de alguns treinadores, torna a coisa pouco espontânea, muito forçada e para mim a intervenção no treino tem de ser algo natural, até porque eu nunca sei o que o processo no aqui e agora vai requerer de mim. Acho muita piada por vezes quando observo alguns treinos ver o modo como alguns treinadores teatralizam os seus gestos, as suas expressões, o modo como comunicam e as expressões verbais que usam. Muitas vezes é notória a necessidade de agradar, de treinar para a bancada. Há, quanto a mim uma confusão, torna-se o essencial acessório e vice-versa, pois mais do que passar a mensagem para os jogadores, o que de facto passa a ser relevante é passar uma imagem e uma mensagem aos adeptos e directores. E também acho curioso porque empiricamente noto que isso se reflecte no modo como as equipas se revelam em jogo, no caso dos treinadores espontâneos na intervenção há tendência para uma manifestação mais genuína, natural e espontânea dos desempenhos, é tudo muito menos forçado e postiço.

Quanto á variação da comunicação nos diferentes dias que compõem o Morfociclo, acho fundamental que o treinador tenha também ele um padrão na sua intervenção e conduta perante os jogadores. A identidade do treinador deverá também espelhar estabilidade no modo de intervir, ainda que aceite que possa e inclusive deva, ter nuances na forma de intervir nas diferentes unidades de treino e inclusive dentro de uma mesma unidade de treino se assim se justificar, pois sendo o contágio emocional uma parte relevante do processo o treinador não deverá ter uma postura neutra, pelo contrário deverá com a sua emotividade e sentimentalidade funcionar como um catalisador do que deseja.

Por isso, embora possa reconhecer que da configuração dos diferentes dias emergem diferentes interacções entre os jogadores, e consequentemente emergem deles também necessidades de intervenção diferentes ao nível da forma em termos de pormenor, o que de facto é relevante é saber gerir isso com sensibilidade de modo a que a forma de intervir seja condizente com aquilo que é o treinador, a realidade em que se encontra e fundamentalmente com as pretensões desejadas. Há aqui também, face á configuração de cada dia, uma espécie de propensão ao nível da tipologia da intervenção ou da forma de comunicar. Como é óbvio, se o exercício é mais individual não vai haver uma intervenção colectiva, o que não quer dizer que não haja advertências para as repercussões que aquilo pode ter a nível sectorial ou colectivo. A configuração padrão de cada dia potenciará, ou terá maior probabilidade para desencadear mais determinado tipo de intervenção, e o contrário também deverá suceder. Ou seja, a forma de comunicar e intervir deverá catalisar e criar uma determinada propensão para que a dinâmica desejada se verifique. Conforme é referido na pergunta a unidade de treino de quarta-feira contempla um conjunto de situações em que de facto o estorvo, o confronto, as disputas… estão mais implicadas. Mas pela própria configuração dos exercícios isso já vai, à partida acontecer e se eu conferir ao processo um carácter altamente competitivo ainda mais provavél é que assim seja. Por isso, se acontecer eu tenho é que não incendiar, se não acontecer aí sim incendeio, e para isso posso de facto ter uma postura, tom de voz, vocabulário mais agressivo ou qualquer outra coisa que eu ache que vai permitir fazer com que o que não está a acontecer, aconteça de facto. Há bocado dizia que não há receitas e aqui isso faz também todo o sentido. Ao reconhecermos que a realidade em questão é imprevisível, a nível micro, devemos reconhecer que esta é também uma dimensão que deve estar presente na sua treinabilidade, na gestão e na forma de comunicar em tal processo. Penso que isso, será inclusivamente potenciador da possibilidade de emergência da criatividade. Considero que quanto mais intuitiva a intervenção do treinador, mais ele estará receptivo ao que o processo lhe dá e mais rico e dinâmico o processo se tornará. Importa notar, que quando digo intuitiva tenho em consideração que essa intuição é balizada por uma Especificidade, e que é algo que pode ser aculturado tendo subjacente um conjunto de pilares coerentes dos quais emerge um padrão de intervenção e de comunicação igualmente coerente e congruente com a intencionalidade implicada no processo. Se estereotiparmos um conjunto de coisas previamente, tanto ao nível do que queremos em termos de aquisição como inclusive ao nível das estratégias de intervenção e comunicação, sobretudo se estas forem da esfera do plano mais detalhado - mais micro - não vamos estar receptivos a coisas novas que podem emergir, recusámo-las e aí a tendência para cristalizar é enorme. Aspecto exacerbado pelo facto de nos querermos impor, ou de impor a nossa ideia, aos jogadores, não partirmos dos jogadores na modelação do processo, adoptando uma postura autista partindo exclusivamente da nossa perspectiva, porque queremos o jogo e o processo que idealizamos sem ruídos nem estorvos, mesmo que esses aspectos, por vezes façam soar muito melhor a nossa música e a vão alimentando continuamente. O papel do treinador passa também por aí, identificar e perceber se as emergências de pormenor do processo são compatíveis e catalisadoras ou não do que deseja. Mas identificar e perceber também que por si só não chega, é fundamental intervir e comunicar em conformidade, como e com que meios?! Não sei, depende, e depende de muitas coisas. Isto é que se constitui de facto como a Fenomenotécnica do treinar.

37. Luis Esteves: Como o professor explica as intenções em ato e as intenções prévias?

Jorge Maciel: As intenções prévias têm a ver com o critério, com o que deve sobredertimar a interacção, portanto tem a ver precisamente com o plano intencional, tem portanto a ver com a representatividade daquilo que eu faço, é a dimensão simbólica que me leva a agir de determinado modo. As intenções em acto têm a ver com o plano da concretização, é o que se manifesta no fazer. Para tornar mais perceptível para a generalidade das pessoas, relembro a história do carro novo do meu amigo e vou acrescentar um exemplo que poderá tornar mais acessível a apreensão destes dois conceitos. Eu quando como, faço-o com a boca fechada e uso talheres para me alimentar, isto é o que eu manifesto quando estou numa refeição, é a intenção em acto. No entanto, eu só o faço porque a configuração axiológica em que cresci e a cultura em que me desenvolvi assim o sugere, e assim valora o acto de estar à mesa numa refeição. Mas eu quando nasci não o fazia, mamava, pegava nas coisas à mão, eram na altura as minhas intenções em acto, coisas que se fizesse agora publicamente motivavam que as pessoas olhassem para mim com estranheza e rejeição, porque a representatividade normalizada do acto de comer não tem a ver com esse tipo de atitudes, a intenção prévia generalizada não é essa. O que se verificou é que fruto de um processo de aculturação eu passei a comer de determinada forma, condizente com o contexto que me envolvia e envolve. E isso só foi possível porque me levaram a fazê-lo, me foram dando referenciais sobre como o fazer e porque eu observava os outros fazer. Curiosamente, no início o conflito é grande, sabemos que não devemos comer de determinada forma mas acabamos por o fazer, nessa altura experimentamos o período do estranhar, paulatinamente o conflito vai diminuindo e aquilo que quero fazer tem cada vez mais a ver com o que faço, até que depois o faço espontaneamente, como hábito. Aí já se entranhou, o mesmo é dizer, já se instalou a relação mente-hábito.

Isto para mim tem tudo a ver com treino, e muito precisamente com a questão colocada. Porquê?! Aquelas que eram inicialmente as minhas atitudes manifestas, intenções em acto, foram se alterando em conformidade com o quadro de valores que me envolvia. Eu fui contactando e indo modelá-lo em função dessa cultura, dessa intencionalidade colectiva partilhada, e que aqueles que me educaram tinham como intenção prévia para a minha educação. O treino visa precisamente fazer com que diferentes intenções prévias (as que cada jogador tem como suas), diferentes formas de viver e de sentir o jogo se tornem congruentes com uma única, que deve ser a do treinador (intenção prévia do treinador é a sua Ideia de Jogo). Ainda que a deste deva respeitar ou pelo menos ponderar aquele que é o património intencional, digamos assim, de cada jogador. O que se persegue no treino é tornar possível o emergir de uma intencionalidade comum, para que no fazer haja sintonia, complexificada pela necessidade de interacção, e da qual resulta a possibilidade de um número considerável de jogadores pensar em função da mesma coisa ao mesmo tempo. Tal estado de desempenho é possível quando se instala no organismo uma adaptabilidade que permite a manifestação concomitante da intenção prévia com a intenção em acto. Nesta espécie de fusão, aquilo que inicialmente era uma impostura passa a ser de facto uma postura, foi Incorporado. Isso é que é o desenvolvimento e no caso concretização de um saber fazer concomitantemente com um saber sobre esse saber fazer. O qual ao se manifestar, manifesta critério e sintonia colectiva, expressa-se sob a forma de ressonância empática partilhada e intencionalizada, que mais não é do que a manifestação sublime de um jogar de qualidade, sobretudo se esta fusão for manifestada com base em desempenhos de elevada qualidade e variabilidade de execução.

38. Luis Esteves: Como o professor gere a densidade de repetições na unidade de treino? Existe uma preocupação com isso na sua visão?

Jorge Maciel: Claro que isso deverá ser uma preocupação e vai de encontro à necessidade de recuperar e de respeitar os tempos de repouso de modo a que os jogadores possam continuadamente vivenciar o jogar, em treino e competição, sem índices de fadiga acentuada. Só deste modo os seus desempenhos poderão ser suportados predominantemente nos sistemas metabólicos que eu pretendo, nomeadamente com base no metabolismo anaeróbico aláctico, e consequentemente instalar pela incidência a esse nível, uma adaptabilidade condizente. Importa realçar que o termo repetições pode induzir algumas confusões que importa esclarecer. Desde logo pode levar as pessoas a pensarem na quantificação do dito volume de treino, e na Periodização Táctica isso não é relevante, porque o que nos interessa é um volume de intensidades, ou melhor dizendo um volume de Intencionalidades, portanto um volume de qualidade. Mas se mesmo assim, numa perspectiva mais quantificadora do treino quisermos determinar a densidade de repetições, pode fazer-se o seguinte raciocínio. O nosso treino não tem mais que 90 minutos, por isso em função do padrão da unidade de treino em questão estabelece-se uma determinada densidade subjacente àquele padrão de esforçar-recuperar que preencha esses 90 minutos, tendo em conta a maior ou menor continuidade ou descontinuidade do treino, o grau de assimilação do que se está a abordar e claro o grau de familiarização e de habituação da equipa ao jogar e ao processo. Temos de ter em consideração que a densidade não é sempre a mesma, porque se digo que adquirir passa por criar condições para adquirir então tudo isso pesa na gestão que faço da relação entre os desempenhos e a recuperação dos mesmos. Uma gestão que volto a frisar não é linear, e daí que respeite também a necessidade de Progressão Complexa.

Outro aspecto relativo à noção de repetição que importa esclarecer prende-se com o facto de que o que se repete, são configurações ou propensões para que surjam determinadas interacções que impliquem a manifestação dos critérios que queremos que suportem o nosso jogar, e não um conjunto de acções previamente determinados e fechados passiveis de mensuração. Trata-se portanto de uma repetição não fechada, mecanismos não mecânicos, que contempla variabilidade e imprevisibilidade na concretização e no que a motiva em termos de pormenor, apesar de paradoxalmente essa variabilidade estar suportada e balizada por uma regularidade que lhe dá sentido, o nosso sentido. Esta noção de repetição do que acontece é probabilística, e deverá tender para o que pretendemos, isto é para interacções que tornem mais provável a ocorrência de determinadas acções ou interacções. Não são portanto repetições no sentido convencional do termo e como tal não haverá, na concretização, duas acções ou interacções iguais, ainda que o critério das mesmas deva ser semelhante e estar sobredeterminado por aquilo que é a nossa intencionalidade colectiva.

39. Luis Esteves: O professor Frade diz que o treino é como uma Moeda, tem o lado da aquisição e o lado da recuperação. Como ter o feeling de estar em recuperação e estar em aquisição no treino?

Jorge Maciel: Não diz isso, diz algo mais profundo que isso. A metáfora da moeda vai além disso, o professor diz que são duas dimensões da mesma face da moeda, ou seja elas têm uma implicação recíproca e como tal têm de ser equacionadas e operacionalizadas conjuntamente, e portanto estabelecer desde logo esse dualismo “estar em recuperação e estar em aquisição” deixa de fazer sentido. Penso que a dificuldade das pessoas perceberem o que acabei de dizer resulta de um problema de categorização, diria sem categoria, porque é redutora. Passo a explicar, geralmente para as pessoas só há preto ou branco nunca cinzento. E isto resulta das pessoas colocarem as coisas em lugares estanques, o que as leva a pensar que ou se está em recuperação ou em aquisição, e na Periodização Táctica não é nada disso, porque se o problema é complexo eu tenho de o equacionar de forma complexa o que passa por necessariamente perceber a relação entre as coisas, e levá-las a efeito de forma conexa. E de facto tenho notado que o grande desafio da complexidade passa precisamente pelo que referi, por as pessoas categorizarem de forma diferente a realidade, percebendo que a interacção é possível e necessária entre realidades aparentemente, ou culturalmente assumidas como opostas. Um passo importante passa portanto por uma concepção mais flexível do modo como categorizamos as coisas, só assim faz sentido falar em inteireza inquebrantável. E isto vale para o modo como concebo o meu jogar mas também para o modo como concebo o processo de treino e o operacionalizo. A categorização deve ser entendida a quatro dimensões, porque a dimensão temporal assume muita relevância. Vamos a um exemplo muito concreto e fácil de perceber. Para mim a categorização tem a ver com isto; pede-se às pessoas que perante um conjunto de músicas façam duas playlists (no fundo duas categorias), uma com as músicas preferidas e outra com as que não gostam. Isto vai criar desde logo uma dificuldade que passa por onde meter músicas que eu até gosto mas não o suficiente para serem as minhas preferidas e onde colocar aquelas que não gostando até tolero e admiro (aquelas que nunca compraria, mas que se estiverem a passar na rádio eu ouço)?! Esse é o problema do branco e do preto sem existência de cinzento. Mas há outro problema e que tem a ver com a temporalidade, passados alguns anos relembram-nos da seriação que fizemos, e damos por nós a pensar, «como é possível, eu gostava daquela música pirosa, era a minha preferida» ou então, «como é que eu dizia que isto não prestava?!». Quero com isto salientar que o processo de categorização é altamente dinâmico, requisitando por isso de articulação na relação entre as diferentes categorias e uma percepção dinâmica do modo como essa relação se processa no tempo. Além disso devemos ter consciência que determinada coisa pode estar implicada em mais que uma categoria, e isso é muito relevante no modo como concebemos o jogo e o sistematizamos, porque passa por reconhecer que determinados princípios são relevantes num determinado momento, mas também o são noutros, ou que um subprincípio ou subsub pode alimentar mais que um princípio de determinado momento. Portanto é fundamental, para se entender a Periodização Táctica que se perceba a profundidade da conexão entre as coisas e não estabelecer compartimento rígidos entre o que constitui a realidade.

É partindo desse pressuposto que faz sentido dizer que o treino e recuperação não são duas faces da mesma moeda, mas antes como afirma o Professor Vítor Frade, que são duas dimensões da mesma face da moeda. Não se está em recuperação ou aquisição. Há um termo que quando utilizado pode parecer um preciosismo linguista, mas na verdade não é. Trata-se da utilização da palavra dominantemente. Quando falamos em realidades padronizáveis e só assim passiveis de serem quantificáveis, o uso desta palavra é fundamental. Muitas das vezes quando há referência à dinâmica implicada em cada dia do Morfociclo devemos ter esse cuidado, ou seja, a tendência é para que a contracção muscular tenha uma maior propensão para determinada configuração, o que não quer dizer que as outras dimensões que caracterizam a contracção muscular não estejam a acontecer em simultâneo. Estão mas de forma menos relevante, ou até residual, ou seja de modo não dominante relativamente ao padrão de contracção muscular mais implicado em determinado dia. E este mesmo pensamento se aplica à questão colocada, isto é, dominantemente estamos num treino de recuperação ou de aquisição, mas não exclusivamente num ou noutro, porque todos os dias são dias de recuperação e de aquisição. Não podemos absolutizar, embora tenhamos que saber que a predominância nuns dias recai mais sobre a aquisição e noutros na recuperação. Em suma, inclusive nos treinos de aquisição tenho preocupação em recuperar, por isso a descontinuidade é uma determinada em função do padrão de desempenho dominante e por isso estou sempre a “afinar porcas e parafusos” como diz o professor Frade. Do mesmo modo, inclusive nos treinos de recuperação, ou seja, em que a enfâse tem tal propósito eu não deixo de actuar no sentido de induzir consistência ao que tem vindo a ser adquirido, porque inclusive defende-se que para recuperar devo estimular o que me levou a fatigar, como tal estou a incidir sobre o meu jogar, ainda que o faça em níveis de complexidade reduzidos, e quanto mais não seja, estou a garantir que pelo que faço estou a criar condições para adquirir.

Depois relativamente ao modo de gerir isso e de o operacionalizar, é de facto muitas vezes um feeling. A dosagem do processo e o estabelecimento das prioridades emergentes a cada instante têm de ser equacionadas com muita intuição. Aí entra a Arte dos treinadores, é um dos modos de expressão ou não, do Sentido da Divina Proporção. Eu devo reconhecer que há indicadores indirectos, detectáveis a olhómetro, que me permitem perceber os estados de fadiga da equipa ou dos jogadores, nomeadamente o maior número de desacertos, maior desconcentração, lentidão a decidir e descoordenação a executar, falta de mobilidade dos jogadores sem bola, jogadores que se escondem, retardamento no timing de execução, reactividade no que fazem, a impossibilidade de antecipar e não menos relevante os próprios comentários e as expressões que manifestam indicam muito sobre o modo como se sentem. Tudo isto, e não só, são aspectos que permitem detectar o estado de fadiga ou de frescura apresentado pela equipa, ou nalguns casos por alguns jogadores, e isso também é muito importante, perceber que nem todos reagem de igual modo à fadiga por exemplo devido às diferenças de idades, pelo historial de treino, por possíveis paragens que possam ter tido recentemente… E quando detectamos que a equipa ou alguns jogadores se encontram num estado que não permite condições para adquirir, aí a prioridade passa a ser criar condições para adquirir, isto é, passa a ser recuperar. Claro, como dominância.

40. Luis Esteves: Alguns jogadores tem a habituação do treino analítico como guia na metodologia do treino, principalmente com treinos especificamente físicos com baixa relação com o jogo, como “convencer” estes jogadores que esta não é a melhor forma para ter seu melhor rendimento?

Jorge Maciel: Essa é uma questão muito pertinente, e do modo como eu lhe respondo perante um contexto habituado a metodologias convencionais pode ser determinante para o meu sucesso nessa realidade. Trata-se de uma questão muito sensível que requer da parte do treinador muita sensibilidade e muita convicção na sua forma de treinar, porque se vacila e não tem consistência no que faz a tendência é para seguir o instituído, ou não seguindo, fazer uma mistura e acaba nem por seguir coerentemente uma forma de treinar nem outra. Perante um possível cenário como o evidenciado na questão o treinador tem de perceber que os jogadores são pessoas, e como tal têm uma história que pela continuidade com que foi sendo marcada, foi incorporada e como tal exerce um peso enorme sobre aquilo que as pessoas são, pensam e fazem. O Professor Vítor Frade nestas situações usa de forma feliz a metáfora do café com leite. O objectivo é salientar que sendo a nossa pretensão colocar os jogadores a beberem leite (representa a Periodização Táctica), sem que a motivação deles vá nesse sentido, porque querem e estão habituados a café (metodologia convencional), a passagem do café definitivamente para o leite deve fazer-se de forma gradual. Isto é, sabendo que o leite tem pouca aceitação, fruto da habituação e da crença generalizada relativamente ao café, o treinador sente necessidade de atender a isso sem deixar de ter a pretensão de os habituar ao leite, mas ao mesmo tempo tendo a sensibilidade para que a passagem não se faça de forma conflituosa pela não habituação. Este é um aspecto muito importante, uma vez que tudo que implica alteração de hábitos cria em nós desconforto, desconfiança, estranheza e inicialmente até mau estar, por isso é que o treinador deve ponderar até que ponto faz sentido passar do café para o leite, sem que haja uma espécie de desmame. Se ele tem consciência disso, e se sabe que o estatuto que ostenta, porque ainda não ganhou nada significativo por exemplo, não lhe permite romper de forma inequívoca e passar directamente para o leite, é uma atitude reveladora de inteligência ir paulatinamente adicionando ao café um pouquinho de leite, e pouco a pouco cada vez mais leite, mas estando sempre atento á reacção que a mistura desperta nos jogadores. Tem de perceber como se processa a aceitação. Esta metáfora do café com leite, no fundo tenta de forma disfarçada retratar aquilo que se constitui como um processo de desmame, ou seja de desabituação. Tenho referido que que na aquisição de um jogar, o treinador deve partir dos jogadores para que estes assimilem as suas ideias, o mesmo é válido para nestas situações em que querem mudar, não a nível da concepção de jogo, mas a nível metodológico. Ou seja, tenho de perceber o que eles têm, para que assim possa perceber como os trazer para o que desejo em termos de operacionalização do processo. No entanto, importa realçar que esse desmame, essa passagem do café para o leite, deve fazer-se já tendo em consideração a lógica metodológica que pretendo implementar, ainda que por vezes com conteúdos marcadamente mais ligados com o café do que com o leite. Ou seja, a lógica metodológica deve obedecer aos pilares do leite, o modo como a levo a efeito, disfarçadamente, é que pode contemplar conteúdos mais analíticos. Conteúdos que devo saber misturar com o leite, mas lá está, sem misturar a lógica metodológica, e que devem ser irrelevantes ao nível da adaptabilidade que poderão induzir nos jogadores, para que não se constitua como estorvo àquilo que considero essencial. É uma gestão difícil de facto, mas necessária.

Passando a um exemplo hipotético, imagine-se que chegamos a um clube onde o culto do fisicismo está muito presente e até com alguns resultados. Nesse caso o que é que se pode fazer?! Desde logo estar sensível para perceber isso. Mas como operacionalizar o processo sem fugir do que desejamos, em termos de lógica, e sem conflituar com o que naquele contexto é cultural?! Podemos por exemplo durante a sessão de treino levar a efeito algumas coisas de que eles pensam sentir necessidade, mas com dosagens muito insignificantes. Por exemplo, faço uma situação jogada, e depois de recuperarem fazem umas corridinhas. Ou então por exemplo, num treino típico de quarta-feira, levo a efeito situações de jogo que cumpram com o que pretendo em termos de jogo, e no aquecimento, ou entre exercícios ou no final realizo algumas situações mais analíticas onde a dominância ao nível do aumento de tensão da contracção muscular esteja presente. Eu tenho que ser é inteligente e criativo para lhes dar o que eles ainda necessitam, e ao mesmo tempo criar pelo fazer uma habituação ao processo o mais condizente possível com a que desejo. É um desafio muito engraçado, porque nos obriga a engendrar formas de o fazer, mas ao mesmo tempo pode ser um processo que nos torna mais próximos dos jogadores, porque nos obriga a percebê-los. E além disso, muitas vezes para os percebermos comunicamos com eles e tomamos consciência do motivo pelo qual aquilo para eles faz sentido. E claro em função disso, tentamos desmontar tal necessidade, conversando com eles, dando-lhes a conhecer uma realidade que desconhecem e sempre que possível servindo-nos de exemplos que vão acontecendo e que lhes são próximos. Esse é um aspecto muito importante. Por exemplo, imagine-se que temos um jogador na equipa com habituação ao treino convencional, e que tem contacto regular com outros jogadores, nas selecções por exemplo, que já treinaram segundo a Periodização Táctica, poderá ser pertinente incitá-lo a falar com esses jogadores no sentido de desmontar a sua crença.

Em suma, penso que esta questão requer da parte dos treinadores muita sensibilidade, criatividade, e fundamentalmente muita competência e não menos importante, resultados. Os resultados são determinantes para a adesão. Por exemplo na última experiência que tivemos na Líbia, foi também muito relevante a este nível. A equipa estava habituada a uma metodologia de treino convencional e culturalmente, por influência de treinadores egípcios e brasileiros fundamentalmente, o treino dito físico está muito enraizado na generalidade das equipas e inclusive nos comentários dos adeptos. Quando lá chegamos só ouvíamos dizer que a equipa estava mal fisicamente, que tínhamos que “treinar o físico”, porque um dos problemas da equipa era determinados jogadores não conseguirem fazer um jogo completo, e um dos mais acérrimos defensores desta ideia era o nosso tradutor. E no fundo espelhava o que pensava a generalidade das pessoas. Mas nós não demos ouvidos ao que se ia dizendo e desde sempre treinamos como desejávamos, embora respeitássemos algumas coisinhas sempre que os jogadores solicitavam. Por exemplo, no final do treino havia um jogador ganês que não estava a jogar quando chegamos e que me pedia para dar umas corridinhas ou para fazer com ele algumas acções explosivas, e eu ficava com ele. Fazíamos coisas com pouca densidade e enquanto recuperava aproveitava para conversar com ele e explicar-lhe que se treinasse bem, não tinha necessidade de o fazer. Fazia-lhe perceber que onde ele tinha de correr é nos exercícios de treino e não no final e que se o fizesse, fazia-o de forma muito mais condizente com que o jogo requisita. Passado pouco tempo deixou de o fazer e reconhecia que estava melhor do que nunca. Portanto, apesar de termos sensibilidade para estes pormenores, e tentarmos a partir deles sensibilizá-los para a não necessidade dos mesmos, desde o início treinamos como pensávamos que devíamos. Tínhamos conversas entre nós, equipa técnica, onde comentávamos o quanto os jogadores estranhavam sair do treino sem estarem a morrer, e no dia seguinte estarem bem para voltar a treinar. Para o jogador sentir-se assim é estranho, e acredito que para muitos desconfortável, por norma o jogador tem de sair do treino morto, para sentir que treinou. Isto tem um peso incrível. Não raras vezes no início do treino falávamos com eles para tentar perceber como estava a ser a adesão a esta forma de trabalhar e como eles se sentiam. Era curioso reparar que inicialmente os jogadores diziam que estavam bem e gostavam, mas nós sentíamos que dizendo-o com sinceridade, evidenciavam muita estranheza e desconfiança. Felizmente podíamos usar um argumento válido, ou talvez o mais válido, é que o Baltemar Brito, ainda que como adjunto, já tinha ganho muitas coisas a treinar desse modo, e dizia-lhes precisamente isso. Isto pode parecer um pormenor, mas não é, a adesão é muito mais fácil quando se chega a um lugar com uma história de vitórias. Se quando nos contratam, os jogadores nos olham e dizem «com este eu vou ganhar», eu praticamente posso passar do café para o leite. Mas voltando à Líbia, depois de lá estarmos dois meses, estávamos já em primeiro lugar com vantagem considerável para o segundo, tendo uma densidade competitiva muito maior que as outras equipas, sem ter qualquer derrota, com os jogadores que não aguentavam um jogo completo a jogarem noventa minutos, e jogando bem… em mais uma conversa com os jogadores onde abordamos o como se sentiam, voltaram a referir que estavam muito bem, mas receavam que o facto de treinar desta forma e de treinarem pouco, segundo eles, lhes poderia ser prejudicial no futuro. Receavam não aguentar o mesmo nível ao longo da época. Estavam naquela situação em que se costuma dizer que «quando a esmola é grande o santo ou pobre desconfiam». Mas este episódio é, pelo menos para mim, muito relevante e identificador do quanto estas coisas pesam nos jogadores e no quanto é difícil desconstruir tais crenças, o que consequentemente requisita da nossa parte de grande sensibilidade.

41. Luis Esteves: O professor Frade diz que a Periodização Tática pode ser aplicada a “70%, 80% 90%”. É adaptável as situações contextuais, o que o professor acha disso?

Jorge Maciel: É preciso perceber bem o que se quer dizer com isso. Na questão anterior torna-se evidente que muitas vezes nos confrontamos com realidades que se afastam daquela que é a realidade ideal para desenvolver o processo do modo como entendemos ser mais ajustado. E essas questões, habituação dos jogadores, a história do clube associada a vitórias treinando de determinada forma, ou até a cultura de treino de um país, assume um peso enorme sobre o modo como se vai concretizar o processo e deverão ser aspectos que eu terei que ponderar com sensibilidade. Se não atender a esses condicionalismos contextuais poderei não estar a ser muito inteligente e inclusive poderei estar a dar tiros nos pés. Daí que eu possa ter necessidade de disfarçar o processo com algumas coisas, que poderão de uma forma superficial e perspectivadas de fora, parecer mais conotadas com o treino mais analítico. Que de facto talvez me afastem dos 100%, mas no entanto, para mim que estou por dentro do processo sei que se trata de uma opção deliberada para poder ganhar espaço entre, os jogadores, direcção, adeptos, e no caso de ser adjunto ganhar espaço relativamente ao treinador, para que depois sim, estando consolidado esse espaço eu possa estar nos 100%. Muitas vezes as pessoas esquecem-se que também esta conquista de espaço digamos assim, ou de aceitação relativamente a uma realidade transgressora, se constitui como um processo que como tal é levado a efeito num contexto que sobre ele exerce muita preponderância. À medida que a aceitação vai crescendo eu vou puxando a realidade para o que desejo, tal como sucede na aquisição de um jogar, isto é, parto com a minha ideia, mas parto da realidade para a concretizar e paulatinamente vou tentado-a aproximar àquilo que eu acho que deve ser a realidade. Mas há nesta estratégia metodológica alguns aspectos muito relevantes, daí que tenha advertido para o facto de ser necessário perceber a profundidade das palavras do Professor quando afirma que a Periodização Táctica pode ser operacionalizada a 70, 80… 100%. Desde logo importa ter em consideração que o que direcciona o processo é o que se faz dominantemente, por isso, o que se faz em termos de disfarce, isto é aquilo que aparentemente é mais convencional, deve ser o suficiente para parecer ilusório, mas simultaneamente suficientemente insignificante para que não se constitua como relevante. Ou seja, o grosso do processo deve ter o viés que queremos dar ao processo, pois é em função disso que a adaptabilidade se instala. Por outro lado, e não menos importante temos de reconhecer que independentemente do grau, para que seja de facto Periodização Táctica, não podemos esquecer que o processo deve respeitar uma determinada matriz metodológica, a da Periodização Táctica e que é composta por Princípios Metodológicos únicos. Depreende-se assim que a lógica processual deve estar a 100%, o modo como é operacionalizada é que pode ter maior ou menor necessidade de conteúdos à partida desnecessários, mas que o contexto requisita e justifica, ou ainda por insuficiência do treinador ao nível da concretização do processo. Claro que quanto mais próximo dos 100% for o modo de a operacionalizar melhor e também mais rapidamente se conseguem os intentos desejados, mas por vezes é preciso contornar muitas coisas com sensibilidade e com o cuidado de aquilo que é potencialmente “ruído”, e nos afasta dos 100%, não interfira negativamente no que se considera essencial, por isso é que o Modelo é tudo. Muitas vezes as pessoas vão ver treinos e dizem que afinal é tudo a mesma coisa, quando na verdade não é, mas dizem-no porque não ponderam o porquê das coisas, nem tão pouco o teor do que se fez e muito menos o que o envolve. Vêem fotos e fazem um filme descontextualizado, sem necessariamente contemplarem a temporalidade implicada naquele processo, por isso não perspectivam o que está antes e o que se perspectiva vir a estar depois para que o presente tenha aquele sentido.

O que importa perceber é que independentemente da percentagem é fundamental que a lógica, que a matriz metodológica seja cumprida a 100%, o modo como é levada a efeito é que poderá ser mais ou menos adequada, mas aí também depende da arte ou criatividade dos treinadores para criarem exercícios que visem os propósitos desejados respeitando as subdinâmicas implicadas em cada dia de treino. Para que se perceba, quando me refiro ao modo, quero salientar que podendo ser mais jogada ou não, com maior ou menor complexidade intrínseca, a matriz metodológica deverá estar sempre presente, senão não é Periodização Táctica. Costumo dizer, e espero não ser mal interpretado, que para aqueles que estão a 100% na Periodização Táctica ou próximos disso, a quarta-feira é dia dos sub e subsubprincípios em regime de dominância de contracção muscular em tensão, a quinta-feira é dia dos grandes princípios em regime de dominância de contracção muscular em resistência e a sexta-feira é dia dos sub e subsubprincípios em regime de dominância de contracção muscular em velocidade. Enquanto que para os que estão em percentuais mais abaixo esses dias são muito mais dias de tensão, de duração e de velocidade.

42. Luis Esteves: Como o professor entende na formação a hierarquia de valores, o que deve-se ter como preocupações no processo formativo dos clubes?

Jorge Maciel: Penso que a prioridade nos processos de formação deverá ser criar jogadores que possam servir à primeira equipa. O problema é que não raras vezes a prioridade passa por criar equipas, para ganhar competições durante os anos de formação. Eu penso que não será impossível conciliar ganhar com criar jogadores de qualidade, acho até mesmo que essa deve ser uma pretensão. Por isso quando me refiro a criar jogadores, é tentar fazê-lo em contextos colectivos de qualidade, o que requer uma concepção de jogo de qualidade, qualidade de treino e como tal bons treinadores. Há um pormenor muito interessante que quanto a mim reflecte o modo como os clubes pensam, ou melhor não pensam a formação e a relação que esta deve ter com a realidade sénior. O pormenor passa por a generalidade dos clubes terem os chamados departamentos de formação, sem estarem englobados no dito departamento de futebol, é um pormenor, mas muito revelador da separação existente entre estas duas realidades que deviam ter um fio condutor único, e verificável a nível da concepção de jogo e também a nível da metodologia de treino. Mas infelizmente são muito poucos os casos em que tal se verifica, mesmo que alguns dos poucos sejam casos de sucesso. A generalidade dos clubes prefere investir continuadamente em jogadores que não sentem, nem estão aculturados á realidade dos clubes, em vez de criar condições e proporcionarem aos jovens da formação condições para integrarem com sucesso a equipa principal. Parece que a formação existe apenas para não parecer mal não ter, e para justificar a utilidade e vertente social dos clubes, muitas vezes mascarada pelo desejo de usufruir de verbas extra a investir, de forma desviada, na equipa sénior. Penso que é um contra senso pensar-se que se assim for os benefícios, mesmo os financeiros são maiores. No imediato talvez, e talvez alimente a ânsia de dinheiro de muita mais gente, mas a médio ou longo prazo não penso que seja assim, porque o investimento elevado na formação, acima de tudo depende de qualidade de ideias e da qualidade das pessoas para o levar as efeito, e o retorno poderá ser muito grande. Porque o clube se tornará auto sustentável e poderá inclusive rentabilizar essa concepção de formação com a venda e constante valorização de jogadores provenientes de tais processos.

Penso que paradoxalmente a enfâse nos processos de formação deve centrar-se nos jogadores, e mais concretamente se possível em conformidade com o tipo de jogadores que queremos formar, o que implica que os clubes definam o que pretendem em termos de jogadores para as diferentes posições. É importante definir perfis padronizados de jogador para as várias posições, e fazê-lo tendo subjacente uma determinada intencionalidade relativamente à forma de jogar, para que os perfis sejam condizentes com o que o jogar implica. E os perfis não podem ser considerados como imposições, nem como verdades absolutas, porque se o talento tem, como acho que tem, muitas formas de se manifestar a padronização nunca poderá estar fechada à possibilidade de contemplar jogadores que fugindo dos perfis à partida estabelecidos se evidenciem de facto como mais-valias. Os perfis são referenciais gerais, que devem ter significado para quem treina na formação e não menos importante para quem detecta talentos. No meu entendimento para se formar jogadores de qualidade importa reconhecer como essa qualidade se pode manifestar e reconhecer que a variabilidade como se poderá expressar implica que tenhamos uma visão abrangente daquilo que é um talento. Infelizmente penso que os olhos com que se vêm o talento nem sempre são os melhores, nota-se claramente, pelo menos em Portugal, que nos escalões de formação há uma predominância para a selecção se fazer com base em critérios morfológicos e nos desempenhos físicos dos jogadores, em detrimento de aspectos que de facto a Top fazem a diferença, como a inteligência, a qualidade posicional, a capacidade para antecipar, o modo de interagir o critério com bola e sem bola, a relação com o jogo e com a bola… Claro que isto é mais exigente do ponto de vista de quem detecta talentos e de quem os treina, não há nada que permita quantificar a não ser o olhometro e a sensibilidade de cada um. Mas infelizmente os talentos são não raras vezes seleccionados a metro e a quilo, os jovens mais avançados maturacionalmente têm grandes vantagens ao nível das oportunidades que lhes são conferidas, porque os treinadores apenas contemplam o que cada um revela no imediato e não o que poderá vir a revelar futuramente. Não entendem que o talento é uma realidade em potencial, por isso optam por dar primazia nas escolhas a jovens que são mais corpulentos, por serem mais eficazes no imediato. Estes jovens acabam também por ser prejudicados, pois muitos deles tendo potencial para muito mais, habituam-se desde muito cedo a viciar o seu jogo, suportando-o quase exclusivamente nas suas vantagens morfológicas e físicas, não desenvolvendo por isso outras formas de dar respostas ao que o jogo coloca. Não admira por isso que muitos destes jovens, que se destacam até por volta dos juvenis depois percam a sua relevância, dando lugar a jovens até então preteridos, porque as vantagens maturacionais que até então apresentavam e que lhes permitiam ser mais eficazes deixaram de existir, e face à dependência que criaram devido ao suporte de um registo de jogo assente no fisicismo, não conseguem desenvolver nem evidenciar outros atributos. Perdendo assim espaço para os demais, que inicialmente em desvantagem por serem morfologicamente e do ponto de vista físico mais débeis, passam esbatidas as diferenças maturacionais a ser os melhores sucedidos por apresentarem soluções de outra ordem, são mais perspicazes e apresentam maior variabilidade nos seus desempenhos. Infelizmente, nem sempre estes acabam por sobressair, em muito devido à exacerbação da dimensão física nas concepções de jogo da generalidade das equipas, e também na contemplação disso como dominante nos processos de selecção de jogadores e nos processos de treino. Nesse caso sobressaem os guerreiros, os abnegados perpetuando desse modo o mito dos atletas, e não necessariamente os futebolistas de qualidade, os talentos inteligentes. Acho incrível como é que no futebol um dos critérios de selecção na formação possa ser o tamanho. Um critério de selecção que é simultaneamente de exclusão. Dói pensar quantos possíveis talentos, não o chegaram a ser por causa desse disparate. E é mesmo um disparate, porque se olharmos para a história do futebol mundial, há de tudo mas curiosamente muito poucos são os que pertencendo a essa elite perfazem o perfil morfológico que muitos procuram. Além disso penso que se pedirmos aos jogadores de Top do futebol mundial do presente e do passado que se reportem às respectivas infâncias, e reconheçam aspectos que os fizeram ser os jogadores que foram ou são, verificamos que o que faziam tinha fundamentalmente a ver com jogar futebol e muito pouco com o que se faz em muitos clubes, e que se faz claramente do espírito e dos conteúdos que se viviam no futebol de rua.

Portanto em síntese penso que o essencial na formação passa por cada clube assumir para si o compromisso de formar para si, mas para tirar proveito, depois terá de perceber o que quer e treinar em função disso, reconhecendo que se aprende a jogar jogando e se possível ganhando para que o habito de vitória esteja presente e se instale como cultura. E essa aspiração penso será tanto mais possível quanto melhor identificados forem os talentos, e quanto mais a evolução destes se verificar em contextos colectivos de qualidade pois é isso que potencía simultaneamente jogares e jogadores.

43. Luis Esteves: O que é jogar bem na sua concepção?

Jorge Maciel: O que é jogar bem, aí está algo com uma polissemia muito grande. O que torna ainda mais pertinente a questão e fundamentalmente cada um, face à pluralidade que tal pode representar, ter bem presente o que é para si um jogar de qualidade. E para mim há pressupostos básicos na identificação ou construção de um jogar de qualidade. Desde logo tenho de reconhecer que o futebol é uma modalidade colectiva, e como tal toda a dinâmica deve assentar na interacção colectiva, de forma organizada e coerente para que a funcionalidade manifesta seja de facto suportada por referenciais colectivos e se manifeste de forma fluída e harmoniosa. Depois não me posso esquecer que o futebol tem um objectivo muito claro, que é ganhar, e para ganhar eu tenho de marcar mais golos que o adversário, por isso o jogar bem tem como pretensão o desejo de atacar. Mas como, atacar por atacar?! Claro que não, para atacar com qualidade eu tenho de manifestar uma dinâmica colectiva que me permita fazê-lo tendo em consideração a existência dos diferentes momentos de jogo. Ou seja, apesar da intenção ser atacar com qualidade a equipa deve estar organizada nos diferentes momentos, para que esse desejo esteja sempre presente, e para que ao acontecer eu tenha em consideração o jogo todo, isto é possibilidade de estando com bola a perder, a possibilidade de quando a perder ou ganhar perceber o que o jogo exige e ainda quando sem bola defender tendo em vista a possibilidade de atacar. Portanto sendo o objectivo claro vencer, e com um futebol dominantemente de ataque, é fundamental que a equipa revele uma identidade colectiva que manifeste organização e congruência com os meus intentos. Além disso, esta identidade colectiva, não deve ser castradora, por isso deve permitir que cada singularidade que para ela contribui se expresse como um acrescento qualitativo ao todo, e simultaneamente se potencíe como parte nesse mesmo todo organizado. Isso, tal como nos diz a teoria da complexidade só é possível se o todo for organizado, o todo organizado é mais que a soma das partes.

O Professor Vítor Frade refere-se ao trinómio Estética Eficácia e Eficiência como o cerne do jogar de qualidade. E de facto assim é, a articulação bem conseguida entre estes três aspectos é determinante, é da melhor ou pior consecução do mesmo que emerge respectivamente um jogar de maior ou menor qualidade. Conforme referi, no futebol há claramente um objectivo claro, vencer, ser eficaz portanto, mas perseguir esse intento deve despertar em quem joga e em quem vê jogar um determinado impacto e essa é a dimensão estética que o jogar deve contemplar. Além disso todos estes aspectos devem ser alcançados tendo por base uma identidade própria, a dimensão da eficiência tem a ver com esse apego a uma intencionalidade capaz de se manifestar regularmente e de forma a dar resposta satisfatória aos problemas colocados pelo jogo. A concretização deste trinómio é bastante complexa e difícil também, porque por vezes a interferência sobre uma das dimensões poderá ter implicações muito significativas nas demais. E uma vez mais, a calibragem de tudo isso faz parte da mestria do treinador. Não obstante da necessidade de pontualmente o treinador ter de aferir para tornar bem sucedida esta relação, penso que o jogar de qualidade se expressa pela seguinte máxima do Professor Vitor Frade e resulta do equilíbrio, feito nos limites entre “máxima redundância (a nível macro – Princípios de Jogo) e máxima variabilidade (a nível micro – plano dos detalhes) ”. Conseguir isto é aspirar à concretização do futebol elevado á sublimidade, mas implica um equilíbrio altamente dinâmico entre atacar defender e passar de um para o outro, fazendo-o na fronteira do caos tanto a nível colectivo como individual, pois é isso que me vai permitir não perda de identidade pela “máxima redundância” e não perda de criatividade pela “máxima variabilidade” de manifestação e de concretização ao nível das diferentes escalas que compõem a equipa aquando da tentativa de materializar tal identidade. Se assim for, e não é nada fácil, as equipas serão dominadoras e controladores, e fundamentalmente organizadas, capazes de entusiasmar multidões e de vencer com maior regularidade. No entanto, tudo isto é muito fácil, ou relativamente fácil de dizer, o pior é como, isto é, com que identificação a suportar esse jogar bem. O que é que eu reconheço como jogar bem e de que modo eu detecto o que num jogar bem é de facto relevante. Por exemplo, posso dizer que gosto do Barcelona a jogar, mas saberei o que o torna único?! Para uns o que o torna diferente é a qualidade individual dos seus jogadores, são os dribles do Messi, as chuteiras da marca x…, para outros, sendo isso relevante, só é possível ou melhor só é potenciado, pelo facto da equipa apresentar uma identidade colectiva única, da qual emerge uma dinâmica determinada assente em referenciais colectivos que potenciam a identidade colectiva e manifestação de cada jogador. Depois e não menos importante, além da necessidade de identificação com o que se constitui como fundamental no rendimento de uma equipa, e no caso aquilo que lhe permite estar e manter-se a TOP, há que saber como parir isso, como conseguir levar isso a efeito e como treinar para o conseguir fazer. Esse é sem dúvida o maior desafio do treino, é mesmo a sua essência.

44. Luis Esteves: Todos queremos ganhar, mas para o professor o processo inicia aonde? Jogar bem ou ganhar?

Jorge Maciel: Quando se está a um determinado nível, ou se calhar independentemente do nível a que se está, vencer é uma prioridade, quando se contrata um treinador o propósito é óbvio, «estás aqui para ganhar, se não ganhas… vida difícil». O treinador lida permanentemente com este desafio, ganhar sempre e mais que os outros. Depois, do mesmo modo que há muitas formas de treinar, haverá também muitas formas de ganhar, apesar de eu ser mais adepto de umas do que de outras. O que me intriga é ver que esta dicotomização, “ganhar ou jogar bem”, se perpetua e influencia as pessoas. Trata-se de um reforçador cultural que pesa muito negativamente na cabeça dos adeptos, dos treinadores, dos directores e dos jogadores, e que faz transparecer a ideia que conciliar jogar bem com ganhar é impossível. E isso é uma estupidez, temos provas mais do que evidentes de que assim é de facto. Veja-se por exemplo os recentes exemplos da Espanha e do Barcelona, vencem e não o fazem a jogar bem fazem-no a jogar muito bem, superiorizando-se de forma categórica e regularmente à generalidade das equipas. O facto de as pessoas não ponderarem esses dados tão evidentes, assim como o facto de não ponderarem que a generalidade das equipas joga mal, logo ser desse grupo que saem os vencedores, reforça a ideia de que para ganhar é preciso jogar mal. Mas não é preciso, como mostram os exemplos da Espanha e do Barcelona, ou até mesmo dos vencedores mais recentes do campeonato português, o Benfica venceu na época anterior a jogar bem, e o FC Porto este ano ganhou a jogar muito bem, por isso superiorizou-se em Portugal e na Europa. Importa desmontar a ideia que jogar mal compensa. O processo inicia por aí, e continua com a necessidade de se ter uma ideia sobre como queremos jogar, para jogar bem e vencer.

Agora indo de encontro ao que referi em cima, aquilo que persigo é tornar exequível o trinómio Estética Eficácia e Eficiência, mas claro que isso tem de ter em consideração o meu contexto. Por isso quando chego a um determinado contexto eu tenho de perceber muito bem onde estou e até onde posso ir, para em função disso estabelecer as minhas prioridades imediatas e a mais longo prazo. Portanto a hierarquização também passa por saber onde estou e qual a minha margem, e isso pode pesar no modo como eu articulo ou dinamizo o trinómio Estética Eficácia Eficiência, podendo face às necessidade circunstanciais valorizar mais uma (ou umas) dimensão em detrimento de outra ou outras. Por exemplo, se chegar a uma equipa que tem de ganhar no imediato para concretizar os seus objectivos – títulos ou manutenção - e se sei que a minha continuidade no meio e o prestígio dependem fundamentalmente de eu ganhar naquele período as minhas preocupações serão determinadas mais no sentido da eficácia. Mas se por outro lado sinto que tenho margem, preocupo-me em criar um jogar mais complexo que me leva mais tempo a construir, mas que eleva de forma mais graciosa o trinómio. O fim é sempre o mesmo, pelo menos para mim, e passa por querer jogar bem para ganhar, mas eu tenho que perceber que em alguns contextos, seja pela necessidade de pontuar, seja pela necessidade de desabituar os jogadores a uma forma de treinar e ou de jogar, para jogar bem eu primeiro e de forma imperativa eu tenho de ganhar. Porque quando se ganha tudo fica mais fácil, ganhamos tempos, ganhamos margem para transmitir as nossas ideias, ganhamos aceitação, e fundamentalmente a crença generaliza-se e a nossa empatia e sintonização com quem treinamos diariamente cresce de forma incrível. Concluindo, penso que não é impossível ganhar e jogar bem, assim como considero desejável ganhar para jogar cada vez melhor.

45. Luis Esteves: Gostaria que o professor referisse os conceitos de: “Arte das trajetórias” e “ Teoria dos alvos” que muitas vezes são citados em monografias orientadas pelo professor Frade.

Jorge Maciel: São dois conceitos que representam duas formas antagónicas de conceber o processo de treino. A arte das trajectórias tem a ver com uma forma de conceber o treino respeitando a não linearidade que o processo deve contemplar. Por outro lado a teoria dos alvos reporta-se a uma visão linear do processo de treino, e representa aquilo a que por vezes se diz ser o “treinar sobre carris” ou conceber o treino e o que nele se faz como mecanismos mecânicos. A Periodização Táctica pretende ser muito mais a arte das trajectórias que a teoria dos alvos, desse modo a dominância do processo deve conter como exercícios, contextos que se constituam como servomecanismos ou cerebromecanismos e não mecanismos mecânicos. Os dois conceitos são, face à sua designação, relativamente fáceis de apreender. A teoria dos alvos remete-nos para uma realidade fixa, portanto imutável, fechada, ou seja com pouca ou nenhuma imprevisibilidade intrínseca. A arte das trajectórias pelo contrário apela à necessidade de escolha de entre várias hipóteses. A noção de trajectórias reforça a ideia de variabilidade de percursos, ainda que volte a frisar, que independentemente do percurso a finalidade é chegar a um destino determinado, daí que as trajectórias, emergentes dos contextos de treino, devam fazer emergir com propensão predominante os trajectos que caracterizam o sentido da nossa caminhada, isto é do nosso jogar. É de facto uma arte, porque implica que cada um tenha autonomia, alicerçada num referencial colectivo, para eleger qual a trajectória mais ajustada. Tenho salientado que a Periodização Táctica tem como grande pretensão o desenvolvimento e concretização de um saber fazer em concomitância com um saber sobre esse saber fazer, por isso mesmo, é que esta forma de conceber o treino tem de ser fundamentalmente uma arte das trajectórias. Deste modo, os jogadores vêm-se obrigados a interagir de forma autónoma e encontram-se permanentemente implicados, sendo assim parte activa, criativa e inteligente no modo como solucionam os constantes e sucessivos problemas que o jogo coloca. No futebol os jogadores têm de estar constantemente a tomar decisões, no entanto o grande problema que se coloca aos jogadores é o problema das escolhas. Isto é, perante a variabilidade de “trajectórias” decidir qual a que deve eleger face às circunstâncias. Ou seja, o problema das escolhas tem de ser o cerne do treino, o treino tem de potenciar a possibilidade do jogador, suportado em referenciais colectivos, eleger convenientemente o que fazer a cada momento. O problema das escolhas vai por isso, para além da profundidade do problema da tomada de decisão, porque se reporta à necessidade de critério na tomada de decisão, de critério no modo como se dá a interacção no aqui e agora. A maximização do critério só se consegue com base na arte das trajectórias. As neurociências assim o sugerem, quando reforçam a importância dos padrões de reconhecimento na acção humana. Por esse motivo o treino não deve proporcionar o apontar para alvos, mas antes, permitir que as configurações sendo variáveis em termos de pormenor, tenham subjacente uma determinada padronização, que necessariamente temos de vivenciar para que em contextos análogos possamos expressar desempenhos condizentes e de qualidade.

Até aqui referi-me a estes dois conceitos apontando para a perspectiva dos jogadores, no entanto, e está relacionado, ele deverá ser igualmente perspectivado do ponto de vista dos treiandores. O treinador, conforme já referi, tem de estar consciente das suas insuficiências para controlar tudo o que envolve o processo de treino, e não pode fazer disso um drama. Por isso, tem de entender o jogo e o treino como uma arte das trajéctorias, o qual requisitando de regularidades (metodológicas e conceptuais) contempla a aleatoriedade, requisitando por conseguinte o Sentido da Divina Proporção, porque também o treinador se debate com o problema das escolhas. E tal como os jogadores de escolhas em contexto de elevada caosplexidade. Se pelo contrário quer tudo controlado, cai na vertigem da catalogação, e aí só poderá aspirar a um jogar e um treinar sobre carris, onde à configuração x corresponde a acção y. Daí emerge muito possivelmente um processo e o que dele resulta metaforizados pela teoria dos alvos.

46. Luis Esteves: Para o professor, o que tem José Mourinho que o faz vencer tanto?

Jorge Maciel: Essa é uma pergunta muito engraçada, e não é a primeira vez que ma fazem. Geralmente respondo sempre do mesmo modo e com uma analogia, que é a seguinte, todos nós aprendemos a escrever, mas depois alguns são escritores e outros não, e dentro dos escritores há uns melhores que outros, e há alguns que estando ao mesmo nível são de estilos literários diferentes. O que quero com isto dizer é que a dimensão formal ou teórica da Periodização Táctica é passível de compreensão da generalidade das pessoas, no entanto, a sua concretização conforme só está ao alcance de alguns. O que determina verdadeiramente o sucesso é a operacionalização do processo, que no caso de José Mourinho tem o suporte metodológico ou científico da Periodização Táctica, mas ao qual ele acrescenta o seu cunho pessoal. Treinar tem muito de Ciência, mas não menos de Arte, e é a articulação bem conseguida entre estes dois planos que permite o sucesso. Muito possivelmente haverá pessoas com igual ou superior apreensão formal daquilo que é a Periodização Táctica quando comparadas com José Mourinho, mas o que as distingue e que tornam de facto Mourinho diferente é o Sentido da Divina Proporção, um MetaPrincípio que tem a ver com a Arte de gerir com Ciência uma realidade altamente complexa e dinâmica, o que pressupõem muito saber, reflexão e intuição.

Cada processo é singular em parte, ou grande parte porque cada líder e cada contexto são singulares, e o modo único como o líder gere isso determina o seu sucesso, e isto é válido e para qualquer orientação metodológica, não só para a Periodização Táctica, e para qualquer estilo de liderança. Por isso digo que dentro dos bons escritores há uns que são romancistas, outros poetas e por aí fora. Também aqui não há receitas, não duvido que num cenário hipotético em que pudéssemos ter José Mourinho e outro treinador numa mesma realidade, a treinar do mesmo modo, com os mesmos conteúdos de treino os resultados seriam bastante diferentes. Mourinho estaria próximo de vencer e o outro de ser rebaixado. Porquê? Porque tem coisas da esfera do indizível e do invisível que os outros não têm, é mestre no Sentido da Divina Proporção.

47. Luis Esteves: Como vê o fenômeno FC Barcelona?

Jorge Maciel: Com enorme satisfação. Porque além de jogar de uma forma única representa uma personificação colectiva daquilo que é a antítese do que normalmente se diz que o jogo de qualidade deve ter. Inegavelmente contraria e refuta a generalidade dos mitos instalados no futebol. Mostra que ganhar e jogar bem são aspirações compatíveis, mostra que a aposta na formação tendo por base uma cultura comum faz sentido, é a prova que pode haver simultaneamente ordem e criatividade, é a prova que a necessidade de acelerar contempla necessariamente a pausa e mostra que o talento não se mede nem se pesa a metro e a quilo. Em suma, é tudo e tem tudo, o que dizem que o jogar de qualidade não deve ter. É uma equipa muito inteligente que pela sua forma de jogar sobredetermina os adversários, lá está porque reconhece uma verdade muito simples, mas muitas vezes ignorada, é que do mesmo modo que não há natação sem água, também não há futebol sem bola, e quem a tem e a gere com qualidade manda no jogo e condiciona-o, dentro dos possíveis.

Penso que o sucesso recente do Barcelona pode ser muito benéfico para o futebol em geral, porque geralmente os referenciais que se adoptam são os dos vencedores, e o Barça ganha como nunca, fazendo-o de uma forma sublime. Oxalá contagie.

48. Luis Esteves: Acredita ser válido a outras equipes “copiar” no bom sentido o FC Barcelona e o seu Modelo de ver o futebol, de forma mais plástica?

Jorge Maciel: Acredito, mas não por geração espontânea. É preciso um strip tease epistemológico que nos dispa e nos leve a ter necessidade de uma realidade futebolística superior como o caso do Barcelona. No entanto, apercebo-me que nem toda a gente tem pelo Barcelona apreço, há mesmo quem ache que o tipo de futebol que praticam é fastidioso, e este é um peso cultural enorme, com grande inércia, mas que importa travar. Temos de ter consciência que para despoletar tal mudança o tempo necessário pode ser mínimo, pois aí referimo-nos ao plano ideológico, mas o tempo necessário para efectivar e concretizar tal mudança é consideravelmente maior. Mas sem dúvida penso que seja possível “copiar” o exemplo do Barcelona, acho até que além de possível é desejável, visto que os referenciais para qualquer processo de treino a mais curto ou longo prazo devem ser os de top e se possível vencedores. E o Barcelona é tudo isso, é TOPTOPTOP e ganha desmistificando a ideia que é incompatível vencer e jogar bem.

O Barcelona é a prova que é possível mudar, há menos de 20 anos a fúria espanhola reinava e o Barcelona não fugia dessa tendência e conseguiu fugir disso porque alguém, Cruyff, lhes mostrou algo que desconheciam. E como ninguém tem necessidade daquilo que desconhece e muito menos do que ignora importa que exemplos de qualidade sejam cada vez mais dados a conhecer às pessoas. Só deste modo podemos evoluir e sair da cegueira que nos afecta. Geralmente as mudanças de paradigma fazem-se por minorias transgressoras, e de certa forma podemos dizer que a nivél conceptual o Barcelona é uma transgressão, do mesmo modo que o é a Periodização Táctica a nível metodológico, e no entanto têm sobrevivido a muita contestação, escárnio por vezes e até inveja. Mas o que se verifica é que são realidades cada vez mais consistentes e cada vez são minorias maiores os que as seguem. Não é uma mudança rápida, muito menos simples e fácil, mas é esse precisamente o desafio que a complexidade nos coloca. E como diria Gaston Berger “quanto mais uma árvore demora a crescer, menos se deve esperar para a plantar”.

49. Luis Esteves: O professor acaba de lançar um livro, gostaria que nos falasse sobre o mesmo e as formas de adquiri-lo aqui no Brasil.

Jorge Maciel: Curiosamente o livro responde muito bem e de forma muito profunda a aspectos relevantes da questão anterior. Resulta da realização da minha monografia de final de licenciatura, que tive que apresentar em 2008 na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Penso que há no Brasil quem já tenha lido a minha monografia, e de uma forma geral o livro contempla tudo o que nela consta, contando contudo com alguns acrescentos e esclarecimentos que entretanto sentimos serem necessários.

De forma resumida apresenta cinco grandes blocos, no primeiro o Futebol é apresentado como um Fenómeno Social Total, no segundo sugere-se que ele é mais que isso, é um Fenómeno Antropossocialtotal, porque requisita na sua manifestação o Homem em toda a sua dimensão. Depois sugere-se que apesar de se tratar de um Fenómeno Antropossociatotal, ele é simultaneamente aparentemente ContraNatura, uma vez que requisita uma destreza ao nível do trem inferior muito desenvolvida, quando o que sucedeu ao nível da filogénese humana foi o ganho de destreza e sensibilidade ao nível das mãos em contraste com a tendência verificada ao nível dos pés. Ou seja, neste ponto realça-se que a evolução da espécie humana induziu em nós um conjunto de alterações estruturais e funcionais que tornaram a prática do futebol ContraNatura, no entanto, é apenas aparentemente ContraNatura, pois uma das características mais significativas da evolução humana é a sua evolução ao nivel da dimensão social, um aspecto também ele caracterizador da essência do futebol. No ponto seguinte do livro faz-se um levantamento de muitas das brincadeiras de jogadores de top e ex jogadores, que depois de devidamente reflectidas servem de orientação para o que em nosso entender deve ser o processo de treino nas idades mais jovens. No ponto seguinte fundamentam-se todas essas sugestões cientificamente, recorrendo fundamentalmente a estudos recentes nas áreas da Plasticidade, da Neurociência, da Epigenética, da Ecogenética, que não sendo destinados ao futebol foram por nós entendidos como muito úteis e com grande aplicabilidade para o futebol. De uma forma geral, trata-se de uma história bastante profunda em torno da necessidade de tomar as rédeas da formação e de racionalizar os processos de treino de jovens com o intuito de aumentar a qualidade dos mesmos e consequentemente permitir que mais talentos floresçam.

Relativamente ao modo de o adquirirem no Brasil, a editora não tem de momento prevista a sua internacionalização, mas quem desejar ter o livro pode contactar-me eu encarrego-me de o enviar sem qualquer problema, aliás já o fiz.

50. Luis Esteves: Que literaturas recomenda para o estudo da Periodização Tática?

Jorge Maciel: A Periodização Táctica, também a este nível pauta pela qualidade e não pela quantidade. Não é muita a bibliografia disponível, pelo menos a directamente relacionada com a Periodização Táctica, ainda que como é visível nas obras conotadas com a Periodização Táctica esta se sirva de fontes provenientes de diferentes áreas científicas ou não. Quanto a livros que retratam a Periodização Táctica recomendo o da Marisa Gomes ou Marisa Silva “O desenvolvimento de um jogar, segundo a Periodização Táctica”, o do Carlos Campos “A justificação da Periodização Táctica como uma Fenomenotécnica”, o livro “Mourinho – Porquê tantas vitórias?”, o meu livro “Não o deixes matar O bom Futebol e quem o joga Pelo Futebol adentro não é perda de tempo!”, o livro do Xavier Tamarit “Que es la Periodization Tatica”. Depois há todo um conjunto de Monografias muito boas orientadas pelo Professor Vítor Frade e algumas também orientadas pelo Professor José Guilherme. Além disso há os apontamentos que o Professor Vítor Frade disponibiliza com alguma regularidade depois de devidamente lidos, anotados e sublinhados.

Aproveito esta pergunta para lançar um aviso às pessoas, no sentido de as alertar para o facto de que a maioria dos documentos que circulam na internet sobre Periodização Táctica deturpam-na, abordam-na superficial e erroneamente, e nalguns casos pode mesmo dizer-se que são verdadeiras aberrações. Temos notado que é cada vez mais frequente algumas pessoas se colarem a algumas frases do Professor Vítor Frade, sem nunca terem falado com ele sobre a Periodização Táctica, e as usarem como slogans para promoção pessoal. É óptimo verificarmos que há cada vez mais interesse na Periodização Táctica, mas é péssimo sentir que tal pode ser pernicioso, há quem tenha conhecimento superficial de algumas coisas, mas queira fazer passar a imagem que sabe tudo sobre Periodização Táctica, e quando se generaliza o que ela não é de facto, acaba por ser dada a conhecer uma versão deturpada e nada condizente com o que ela é. Há quem pense que basta dominar a terminologia para dominar o que de facto é a Periodização Táctica, e como são bem-falantes e poucos dominam o que de facto ela é, acabam por ser tidos como defensores da Periodização Táctica. Como se tal não bastasse, há ainda o oportunismo de algumas pessoas que se servem da prostituição intelectual e de um atrevimento parasitáritário para se promoverem, por vezes inclusive, intrometendo-se, desrespeitando e pondo em causa pessoas que no terreno levam a efeito esta forma de treinar. O Professor Vítor Frade diz várias vezes que “o atrevimento é o maior sintoma de ignorância”. Sabemos de alguns casos, e pessoas até com responsabilidades académicas, que num determinado contexto, como por exemplo a Faculdade de Desporto da Universidade do Porto se dizem contrários à Periodização Táctica, mas que quando lhes convém, em contextos diferentes se servem dela como um exemplo, se dizem seguidores e nalguns casos até mesmo mentores. Na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, para que as pessoas saibam, só existem duas pessoas verdadeiramente identificadas com a Periodização Táctica, o Professor Vítor Frade e o Professor José Guilherme. Percebo que as pessoas se seduzem facilmente pela Periodização Táctica, e como tal há necessidade de lhes dar a conhecer o que ela é de facto. Mas infelizmente, o atrevimento que por vezes domina nas diferentes áreas, e o treino não é excepção, acaba por não permitir que a Periodização Táctica seja dada a conhecer como deveria.

Luis Esteves: Professor, mais uma vez gostaria de agradecer pela disponibilidade em compartilhar seu conhecimento conosco, muito obrigado.