segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O MODELO DE JOGO COMO "NORTEADOR" NA FORMAÇÃO DE ATLETAS


Rodrigo Vicenzi Casarin

Luis Esteves



"Não é possível compreender e explicar a complexidade dos JD, enquanto sistema de transformação, senão apelando a modelos que integrem as noções de ordem, desordem, integração e organização"

Gréhaigne (1992).
O processo e o emergir de talentos se estabelece a partir da criação de estratégias acentuadas com base em sistemas auto-organizados e longevos, ou seja, trata-se de um desenvolvimento a longo prazo que pressupõem no investimento da inteligência, criatividade, autonomia, educação e variabilidade (BENTO, 2004; FRADE, 1979).

Os projetos de formação são de suma importância para a criação de uma cultura futebolística, com princípios e regras coerentes e bem definidas, que tenham por base um modelo de jogo que, por sua vez, orientará a concepção de um modelo de treino, um modelo de jogador e até mesmo um modelo de treinador (LEAL e QUINTA 2001).

Na concepção de Garganta (2007), o futebol só faz sentindo entendido dentro de uma proposta tática, com o treino visando a implementação de uma “cultura para jogar”. Para o autor, a forma de jogar é construída e o treino consiste em modelar os comportamentos e atitudes de jogadores/equipes, através de um projeto orientado para o conceito de jogo/competição. Carvalhal (2001) confirma esse pressuposto, afirmando que o modelo de jogo deve ser o “cerne” de todo processo de treino.

Entende-se por modelo de jogo um corpo de idéias, relacionados como uma determinada forma de jogar, constituindo assim como um “perfil” de jogo da equipe (GRAÇA e OLIVEIRA, 1994). O mesmo consiste no mapeamento de um conjunto de referências necessárias para balizar a organização dos processos de organização ofensiva e defensiva e transições ofensivas e defensivas, respeitando os princípios definidos (CASTELO, 1994; MORBAERTS 1991).

Neste seguimento, Oliveira (2004) refere que o modelo é essencial para arquitetar e desenvolver um processo coerente e específico preocupado em criar um jogar. Desta forma, Leandro (2003) menciona também que cada concepção de jogo produz um modelo de jogo próprio, uma vez que as idéias inerentes a uma determinada cultura de jogo se diferenciam. Castelo (1996) refere que cada modelo de jogo compreende a sua evolução dinâmica e criativa ao longo do seu processo de desenvolvimento. Portanto, Frade (2006) afirma que o modelo de jogo é a maneira como uma equipe irá jogar, é a cultura de clube, é a relação com a FORMAÇÃO... enfim é TUDO.

Assim, sabe-se que, quando um treinador chega a um clube, além de analisar sua condição física-estrutural-planejamental (materiais, campos, recursos financeiros, competições), observa seus jogadores e pensa na melhor forma de pô-los a jogar (sua concepção de jogo) em cima da cultura de futebol do clube. Essa é a lógica. Certo ou errado? Errado. Poucos dos nossos clubes e treinadores respeitam suas questões históricas e culturais, e a cada semestre modificam sua forma de jogar, não adquirindo uma cultura de clube necessária para criar uma identidade futebolística. Essa constatação é um dos vários “cancros” do nosso futebol e acaba refletindo nas categorias de base.

Oliveira (2008) confirma essa idéia afirmando que, quando um treinador é contrato por um determinado clube, trás consigo sua concepção de jogo, porém, terá que se adaptar a cultura de clube que poderá ter um Modelo de Jogo padronizado a todas as categorias. Assim, o treinador terá que adaptar suas idéias de jogo em cima desse modelo preconizado. Na concepção de Pinto (1996), é a existência de uma cultura de jogo comum a todos os jogadores que os distingue de outros, sendo essa mesma cultura de jogo a responsável pela diferenciação de várias equipes, apresentando-se como uma “impressão digital” de cada equipe.

Nesse entendimento, parece que as idéias do treinador não são importantes para a idealização do modelo?

Evidente que são, mas para serem válidas e relevantes, as mesmas devem ser contextualizados com a cultura de jogo, modelo de treino e o modelo de jogadores pertencentes ao clube. Frade (2004) deixa explicito que o treinador tem uma ação decisiva em todo processo evolutivo da equipe, já que aplica um conjunto de conhecimentos prévios (seu conhecimento sobre o jogo) e que se informou e vai adquirindo diariamente sobre o clube que gere (conhecimento sobre a cultura de clube).

Assim, o treinador, no momento de construção do modelo de jogo da sua equipe, além de considerar as suas idéias de jogo, deve respeitar as questões culturais do clube e as sócio-culturais dos jogadores (PINTO e GARGANTA, 2006).

Portanto, o treinador não está sozinho; por mais claro e evidente seja aquilo que deseja (sua concepção de jogo), o mesmo lidará com fatores importantes que afetarão no desenvolvimento do modelo de jogo.

Na concepção de Mourinho (2001), para elaboração de um modelo de jogo é importante conhecer:

 O clube em questão; características históricas, sociais e culturais do clube;

 A equipe e o respectivo nível de jogo;

 O nível e as características individuais dos jogadores;

 O calendário competitivo;

 Os objetivos a atingir;

 Organização funcional ou articulação princípios, sub-princípios e sub-sub-princípios estabelecidos nos momentos do jogo;

 Organização estrutural ou sistemas táticos;

 Realidade estrutural e financeira.

Também, como se refere Oliveira (2008 cit. por Lemos 2008), deve-se considerar outros aspectos relevantes:

 Modelo de Clube (estilo de jogo marcante); se é compatível com minhas futuras idéias;

 Número de Jogadores no plantel;

 Número de treinadores ou integrantes da comissão técnica;

 Número de treinos semanais.

Desta forma, a construção de um modelo de jogo deverá evidenciar uma construção fractal única, aberta as contingências das interações entre os diferentes agentes (aspectos históricos, torcedores, treinadores, jogadores...) e ao respectivo envolvimento cultural que esse jogar emergirá (OLIVEIRA, 2004).

Torna-se ainda mais claro após as exposições acima, que, para que tal seja exeqüível, deve-se ter em conta um fio condutor, isto é, um padrão cultural (modelo de clube), um modelo de treino e modelo de jogador, cujas articulações sejam devidamente efetuadas entre as categorias de base, inspirando-se no plantel profissional, nas idéias de jogo deste (MACIEL, 2008).

Dessa maneira, todas as equipes devem procurar padronizar seu futebol, construindo um modelo de jogo a ser utilizado em todas as categorias. Assim, o processo de formação ficará completo e o jogador, ao chegar à equipe profissional, estará preparado para desempenhar seu papel (em sua determinada posição) de uma forma satisfatória, já que sua experiência na base lhe dará condições para vivenciar padrões comportamentais similares aos do futuro.

Mas deve-se ter em mente as caracterizações que cada faixa-etária exige. O mesmo modelo de jogo será utilizado em todas as categorias, mas os exercícios, as sessões semanais, o tempo das sessões, as exigências pelo resultado e pelo cumprimento dos padrões pé-determinado táticos-técnicos-psicologicos-físicos, deverão diferenciar-se, já que não se pode confundir o futebol-base com o futebol-profissional. Neste contexto, o Modelo de Jogo não pode ser rígido, devendo ser variável dependendo do contexto em que se insere (CARDOSO, 2006).

Para Silva (2008), o processo de treino deve pautar-se por princípios que modelem o jogo no sentido de uma concretização equilibradora entre o ser que joga e o jogo que é jogado. Ou seja, por um lado a modelação do jogo deve considerar a criança, o jovem, sua singularidade, e, por outro lado, deve considerar o jogo com inteireza inquebrantável.

Nesse contexto, Garganta (2002) coloca uma seqüência de progressão do modelo de jogo, dividida em três fases básicas; é importante saber isso para entender o processo de aprendizagem/ensino da equipe e dos jogadores. Não há uma velocidade específica de ensino, pois cada equipe tem um tipo de resposta aos estímulos propostos.


MODELO RUDIMENTAR

 - Jogo estático, não orientado, jogadores centrados sobre a bola, excesso de verbalização.

 Os jogadores perseguem indiscriminadamente a bola, aglutinando-se sobre ela;
 Dificuldades na relação com a bola (Domínio, Controle, Proteção, Passe... etc.);
 Utilização sistemática da visão para olhar a bola, impossibilitando a "leitura" do jogo;
 Imobilismo dos jogadores sem bola, excesso de verbalização;
 A circulação da bola não é voluntária;  Sucessão de ações isoladas e explosivas sobre a bola.


MODELO INTERMEDIÁRIO

 - Jogo estático, orientado, jogadores centrados sobre o passe.

 Ocupação mais racional do terreno de jogo, embora pouco eficaz, pois é pouco móvel, estático;
 Existência de blocos de jogadores estáticos que trocam passes entre si;
 A visão (Central e Periférica) vai sendo aos poucos "libertada" para ler o jogo;
 Todo o encadeamento de ações necessita de uma paragem Bola-Jogador;
 Pouca agressividade ofensiva.

MODELO AVANÇADO

 - Jogo dinâmico, orientado, jogadores centrados sobre a finalização - Gol

 Jogadores organizados em funções de finalidades diferentes;
 Agressividade ofensiva;
 O portador da bola joga de cabeça levantada para "ler" o jogo;
 Alternância do jogo em largura e profundidade;
 As ações são organizadas em função dos alvos – goleiras;
 As ações são encadeadas;
 Privilegia-se a Comunicação Motora, em detrimento da Gestual e Verbal.

Então, é importante respeitar o processo de progressão qualitativo do modelo de jogo; isso não tem tempo certo, depende da categoria, da maturação dos atletas, da especificidade do treino. Portanto, não é de um dia para o outro que os atletas estarão prontos para integrarem o grupo profissional. O processo só ficará completo se a progressão lógica e o roteiro hierárquico das fases de aprendizado ao modelo de jogo forem vivenciados inteiramente pelos atletas.

Desta forma, podemos observar que o treinar deve ser perspectivado através de níveis de complexidade diferentes e crescentes, determinado por um padrão (modelo de jogo) que evoluirá qualitativamente, tornando-se um hábito não estanque e mecânico, gerador de automatismos libertadores.


Corroborando essa idéia, Faria (1999) afirma que esse hábito de jogar de determinada maneira só poderá acontecer se os princípios do modelo de jogo estiverem claramente definidos, forem trabalhados de forma sistemática e evidenciarem uma idéia coletiva de jogo. Poucos clubes no mundo encontram-se com uma cultura de formação orientada por um modelo de jogo, devidamente organizada e operacionalizada. Um exemplo clássico é o Barcelona, onde certamente o grande sucesso nas últimas décadas deve-se a sua cultura de formação.

Evidente que o Barcelona não é parâmetro para ninguém aqui em nosso país, mas pode ser espelho para clubes que estão buscando uma mudança de mentalidade. Assim, sugere-se nesta estruturação do departamento de base, a unificação de um modelo de jogo e a contratação de profissionais que se identifiquem com esta proposta.

Esses preceitos acima citados, certamente proporcionarão uma formação qualificada e ajudarão a romper a crise tático-técnica-psicologia, (a dimensão física não foi citada, em virtude da hiper-valorização da mesma nos departamentos de base) e econômica pelo qual os clubes estão passando. Assim, os clubes terão jogadores qualificados, não apenas para serem negociados, mas para jogarem no clube, sem necessitar a cada ano contratar jogadores que não se identificam com o clube e que contribuem demasiadamente para os gastos.

Por fim, o modelo de jogo deve ser entendido com um sistema auto-organizado e autopoiético, algo em aberto e dinâmico, contemplando mudança, um aspecto determinante para emergi-lo da criatividade dentro do sistema, que, tendo subjacente um determinado padrão, permite ao jogar e aos potenciais talentos, evoluírem para níveis de complexidade mais elevados, sem perda de identidade (MACIEL, 2008).

Assim, fica latente esse preceito de começar a utilizar o modelo de jogo como referência para formação de atletas aqui no Brasil. Mas deve-se perceber a interdependência dos conceitos de modelo de clube, modelo de treinamento e modelo de jogador, dentre outras variáveis, para chegar ao resultado final: modelo de jogo.

Os paradigmas estão em constante mutação; evidente que seus conceitos levarão algum tempo para serem aceitos, considerados normais e válidos, principalmente nesse mundo “monopolizado” do futebol. Friedrich Nietzsche retrata muito bem esse panorama ao afirmar que “não há fatos eternos, como não há verdades absolutas”.



REFERÊNCIAS

BENTO, J.O; Conceito de Formação. In TANI, G.; BENTO, J; PETERSON, R. (Eds.), Pedagogia do Desporto. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

CARDOSO, F; A necessidade de contextualizar a dimensão táctica no Futebol. FADEUP. 2006.

CARVALHAL, C; No treino de futebol de rendimento superior: a recuperação é… muitíssimo mais que recuperar. Braga: Liminho, 2001.

CASTELO, J; Futebol, a organização do jogo; edição do autor; Lisboa, 1996.

CASTELO, J; Futebol: modelo técnico-táctico do jogo. Lisboa: Edições FMH-UTL

Mombaerts, E. (1991). Football de l´analyse du jeu à la formation du joueur. Ed. Actio. Joinville-le-Pont. France. 1994.

FARIA R; Periodização Táctica. Um imperativo Concepto-metedológico do Rendimento Superior em Futebol. FADEUP,1999.

FRADE, V; Disciplina de "Opções - Futebol". Esboço analítico de programa. Universidade do Porto. 1979.

FRADE, V; Apontamentos das aulas de metodologia aplicada I, opção de futebol. Porto. FADEUP, 2004.

FRADE, V. Apontamentos das aulas de metodologia aplicada I, opção de futebol. Porto. FADEUP, 2006.

GARGANTA, J; Competência de ensino de jovens futebolistas. Universidade do Porto/ Faculdade de Ciência do Desporto e Educação Física. Rev. Digital, ano 8, fev. 2002. Disponível em .

GARGANTA, J. Modelação Táctica em Jogos Desportivos: A Desejável Cumplicidade entre Pesquisa, Treino e Competição. I Congresso Internacional Jogos Desportivos. FADEUP. 2007.

GRAÇA, A.; OLIVEIRA, J; O ensino dos jogos desportivos. Centro de Estudos dos jogos Desportivos. FADEUP.1994.

LEAL, M.; QUINTA R; O treino de futebol: uma concepção para a formação. Braga: APPACDM

LEANDRO, T; Modelo de Clube: da concepção a operacionalização. Um estudo de caso no futebol clube do porto.FADEUP. 2003.

LEMOS R; Periodização táctica: um aprofundamento e uma explicação para a conotação de modelização sistêmica. Curso de animação e gestão desportiva. 2008.

MACIEL, J; A incorporacção precoce dum jogar de qualidade como necessidade (eco)antroposocialtotal: Futebol um Fenómeno AntropoSocial Total, que primeiro se estranha e depois se entranha e logo, logo, ganha-se! FADEUP. 2008.

MOURINHO, J; "Programação e periodização do treino em futebol" in palestra realizada na ESEL, no âmbito da disciplina de POAEF. 2001.

OLIVEIRA, G. J; O conhecimento especifico em futebol. Contributos para a definição da uma matriz dinâmica do processo de ensino-aprendizagem /treino do jogo. Tese de Mestrado (não publicada), FADEUP. 2004.

OLIVEIRA, G. J; Entrevista. O desenvolvimento do jogar segundo a periodização tática. FADEUP. 2006.

PINTO, J; A táctica no futebol: abordagem conceptual e implicações na formação. In: J. Oliveira e F. Tavares (Ed.). Estratégia e táctica nos jogos desportivos colectivos. FADEUP. 1996.

PINTO J.; GARGANTA, J; Contributo da modelação da competição e do treino para a evolução do nível de jogo no futebol. In: Oliveira J, Tavares F. Estratégia e táctica nos jogos desportivos colectivos. Porto: FADEUP. 1996.

SILVA, R; A pluridimensionalização de uma aprendizagem que, sendo futebolística, é uma emergência funcionalmente específica, como objecto de conhecimento futebolístico-científico! : abordagem a uma era pós futebol de rua pela radiografia do talentizar, num futebol que forma, não deforma! FADEUP. 2008.

2 comentários:

Unknown disse...

grande post professor, espero que um dia em nosso futebol seja dado o devido valor ao conhecimento para podermos chegar a um nível organizacional quanto ao treinamento e gestão desportiva que nos permitam ter clubes com uma cultura de jogo vincada, enraizada nos seus atletas.

Unknown disse...

Excelente post Luis... é interessante ver como um clube como o Barcelona que pode comprar os jogadores que bem entender, precisar de poucas peças de "fora" a cada temporada para compor seu forte plantel devido ao exímio trabalho de formação de atletas. Aos clubes do Brasil, não tão bem economicamente, é hora de reverem os conceitos... e rápido!

Abraço,
Alberto Tenan.