sexta-feira, 6 de novembro de 2009

CONSTRANGIMENTOS DA ACÇÃO À LIBERDADE DE (INTER)ACÇÃO, PARA UM FUTEBOL COM PÉS … E CABEÇA. – JÚLIO GARGANTA (2005)

In O contexto da decisão. A acção táctica no desporto: 179-190.
Duarte Araújo (ed.). Lisboa, Visão e Contextos.

JÚLIO GARGANTA


INTRODUÇÃO

Nas partidas de Futebol, as equipas disputam objectivos comuns, lutando para gerir em proveito próprio, o tempo e o espaço, através da realização de acções de sinal contrário (ataque versus defesa) alicerçadas em relações de oposição e de cooperação Cada equipa comporta-se como um sistema dinâmico que vive da organização, o que quer dizer que depende do compromisso entre a sua identidade e a sua integridade, detenha ou não a posse da bola num dado momento do jogo. Tais cenários, porque se desenvolvem em situações de participação simultânea e espaço comum, propiciam actividades férteis em acontecimentos cuja frequência, ordem cronológica e complexidade não podem ser determinadas antecipadamente. Como consequência, torna-se importante desenvolver competências que transcendam a execução propriamente dita e valorizem as capacidades relacionadas com as estratégias cognitivas que guiam a captação de informação e a tomada de decisão. Parece assim justificar-se que jogo e treino sejam perspectivados como sistemas acontecimentais dinâmicos, a partir do reconhecimento da importância das interacções dos jogadores/equipas para agirem eficazmente em situações de elevada instabilidade e variabilidade.


OS JOGOS DO JOGO DE FUTEBOL


O processo de treino em Futebol visa induzir alterações positivas observáveis na performance dos jogadores e das equipas, pelo que a exteriorização dos comportamentos durante o jogo, deve traduzir o resultado das respectivas adaptações. Por outro lado, sabe-se que a orientação do treino deve ter em conta a informação extraída do jogo, mormente no que se reporta ao tipo de exigências e à actividade exibida pelos jogadores, para lhe dar resposta. No concurso das equipas para um objectivo comum e no seu permanente antagonismo, o jogo de Futebol apresenta-se como uma sequência de situações-problema de cooperação e oposição, a qual gera um fluxo de comportamentos de contornos variáveis. Os colectivos em confronto organizam-se em torno de lógicas particulares, em função deregras, princípios e prescrições, operando em contextos de elevada imprevisibilidade e aleatoriedade. Tal sugere que na aparência simples de uma partida de Futebol se esconde um fenómeno que assenta numa lógica complexa. O jogo existe, portanto, na confluência de uma dimensão mais previsível, induzida pelas leis e princípios do jogo, com outra menos previsível, materializada a partir da autonomia dos jogadores, que introduzem a diversidade e singularidade dos acontecimentos.

Como tal, numa partida de Futebol o quadro do jogo é organizado e conhecido, mas o seu conteúdo é sempre surpreendente. De facto, não é possível prever e estandardizar as sequências de acções, podendo dizer-se que não existem duas situações absolutamente idênticas e que as possibilidades de combinação são inúmeras, o que torna inviável recriá-las no treino. Todavia, parece-nos que para fazerem sentido, as situações devem ser categorizáveis, isto é, reconvertíveis em categorias ou tipos de situações. Aliás, se assim não acontecesse, se não houvesse algo que ligasse o jogo a um território de possíveis previsíveis onde pontificam os designados modelos ou representações, a preparação dos jogadores e das equipas tornar-se-ia obsoleta (Garganta & Cunha e Silva, 2000). Deste modo, o mapeamento do jogo e a construção dos exercícios para o aprender e treinar, passam pela configuração de modelos explicativos e interpretativos, que disponibilizem a representação dos respectivos conteúdo e lógica, a partir das dimensões percebidas como essenciais do fenómeno Diríamos que o treino de jogadores e, sobretudo, a construção de equipas, reclamam um conjunto de competências, de entre as quais se salientam as que se encontram directamente relacionadas com: a) as capacidades de leitura e interpretação do jogo, e com b) a produção e vivência de situações de exercitação que permitam um elevado efeito de transferência, associado a c) consideráveis níveis de autonomia e criatividade. Esta problemática conduz-nos a um conjunto vasto de questões, com claras implicações no quotidiano da preparação desportiva:


→Em que bases sustentam os treinadores, os respectivos modelos de jogo? Como os comunicam aos jogadores/equipa e a que metodologias/estratégias recorrem para fazer com que sejam treinados e assimilados?


→De que modo se processa a transformação de comportamentos e atitudes dos jogadores/equipa, em função do(s) modelo(s) de jogo(s) e das exigências da modalidade?


→Como aferir, controlar e corrigir a performance dos jogadores/equipa relativamente ao mapeamento do jogo, preconizado no(s) modelo(s)?


No artigo que motivou este texto, Luís Júlio e Duarte Araújo oferecem-nos pistas para lidarmos com algumas destas questões Partindo do pressuposto de que o jogo de Futebol é um sistema dinâmico que opera segundo distintos padrões de acção e de que tais padrões evidenciam uma variabilidade interindividual, os autores procuram reflectir acerca da natureza da acção táctica no jogo e colocam-nos perante um desafio: face às crescentes exigências que se colocam no jogo e no treino do Futebol, que preocupações devem sustentar uma prática que garanta maior eficácia?


FUTEBOL É INTERACÇÃO


Considerando que a acção de um jogador desemboca obrigatoriamente na interacção dos demais elementos em jogo, cada uma das equipas que se defrontam comporta-se como uma unidade cujas relações entre os seus elementos se sobrepõem às mais-valias individuais. Porque se trata de uma modalidade situacional, as competências dos jogadores e das equipas de Futebol reportam-se a grandes categorias de problemas, atravessando diferentes níveis de organização, em resposta aos sinais do envolvimento. Por exemplo, o que permite a uma equipa estar equilibrada quando defende tem a ver, não só com a disposição dos jogadores no terreno, mas sobretudo com as possibilidades que existem de ligação entre esses jogadores no sentido de encurtarem distâncias entre si, de diminuírem as distâncias entre linhas (transversais e longitudinais) e, com isso, criarem e transferirem zonas de pressão junto da bola. Mais do que centrar a atenção nas acções de jogo, importa então deslocar o olhar para as interacções dos actores, na sua relação com o envolvimento. É nas articulações do sistema que este tece a sua identidade e é também nelas, e através delas, que cria condições para a manter ou alterar, em função das circunstâncias e das respectivas debilidades e mais valias dos intervenientes.


Advogando uma abordagem predominantemente qualitativa do jogo, os referidos autores não rejeitam, contudo, a análise quantitativa, referindo que a mesma pode ver acrescida a sua relevância se estiver associada a metodologias que abordem a dinâmica inerente à coordenação das acções dos jogadores ao longo do jogo Nesta linha de raciocínio, acrescentaríamos que na busca da identificação e interpretação dos comportamentos críticos do jogo, se destaca a utilidade do registo e interpretação, não tanto das quantidades per se, mas sobretudo das quantidades da qualidade. Por isso, temos vindo a chamar à atenção para a relevância do estudo do “enredo” do jogo, i.e., do respectivo fluxo histórico, mais do que do comportamento pontual e avulso dos seus actores. O enredo, estando mais voltado para o processo do que para o produto, vive das interacções dos comportamentos, condensadas na dinâmica auto-organizacional das equipas.


Sem menosprezar o objectivo que guia as equipas quando jogam Futebol – obter golo (s) e impedir que o adversário o faça – destacamos a importância de se centrar a atenção, não apenas nas fases terminais das sequências de jogo, mas também, e principalmente, nos processos que geram determinados efeitos ou प्रोदुतोस O Futebol, enquanto disciplina desportiva dependente do factor tempo (time-dependent, cf। Franks & McGarry, 1996), é interactivo e tende a integrar cadeias de acontecimentos descontínuos, implicitamente relacionados, não apenas com os acontecimentos antecedentes, mas também com as probabilidades de ocorrência de acontecimentos subsequentes, considerada a respectiva aleatoriedade (Garganta, 1997). Neste domínio, a denominada Análise Sequencial (Anguera, 1999) constitui um instrumento precioso, dado que permite perceber o que induz ou inibe determinados comportamentos-critério, considerando a cadeia acontecimental do jogo. Nesta metodologia as probabilidades de ocorrência dos diferentes comportamentos resultam das avaliações retrospectiva e prospectiva das sequências de eventos do jogo.


O conceito de sistema exprime o fluxo do jogo, permitindo enquadrar as opções tácticas dos jogadores e das equipas. Para além disso, valoriza o carácter organizacional e sequencial do jogo, dado que é a organização que produz a unidade global do sistema, sendo ela que transforma, produz, relaciona e mantém o sistema, concedendo características distintas e próprias ao colectivo.


MEMÓRIA, CONHECIMENTO E ACÇÃO


Cada sujeito percebe o jogo, as suas configurações, em função das aquisições anteriores e do estado presente। Perante o fenómeno jogo, o observador constrói uma paisagem de observação, entendida como um conjunto de estímulos organizados face ao “ponto de vista” que ele possui sobre o fenómeno. Ou seja, retém o que se lhe afigura pertinente, interpreta os dados dispersos e organiza-os conferindo-lhes um sentido próprio, o que quer dizer que o sentido do jogo é construído e depende de um modelo de referência (Garganta, 1997). Em contextos de elevada incidência estratégico-táctica as capacidades desenvolvem-se a partir de blocos de informação integrados, conhecimentos tácitos que o jogador percebe como conjuntos de possibilidades. Quando dizemos que os jogadores têm "sentido da jogada", "cheiram o golo", têm "capacidade de antecipação", estamos a referir um conjunto de “dons” que, como refere Marina (1995), mais não são do que modos eficazes de lidar com grandes blocos de informação.


Para Temprado (1991) os conhecimentos que estão na base do pensamento táctico estão organizados sob a forma de cenários, de acordo com um conjunto de indicadores, de objectivos a alcançar e de efeitos a produzir। Deste modo, os conhecimentos de que um jogador dispõe permitem-lhe orientar-se, prioritariamente, para certas sequências de acção, em detrimento de outras. Mas a discussão em torno desta ideia está longe de gerar consenso, assistindo-se a um debate entre os partidários de um entendimento cognitivista, conotado com os programas motores e as representações mentais, e os cultores da Psicologia Ecológica e da Teoria dos Sistemas Dinâmicos, estes mais comprometidos com as variáveis que governam a percepção e a produção de padrões.


O artigo de Júlio e Araújo inscreve-se nesta segunda perspectiva. Nele, os autores referem que ao assumir-se que o conhecimento dos jogadores de maior perícia está sempre disponível na sua memória, se experimenta dificuldade em explicar, por exemplo, as variações do rendimento desportivo quando os jogadores defrontam diferentes adversários em distintos enquadramentos competitivos. Acrescentam que talvez esta seja uma das muitas questões que levam cada vez mais autores a apontar para a necessidade de se considerar a dinâmica da interacção jogador-envolvimento para compreender a tomada de decisão no desporto. De facto, porque actuam num contexto de oposição e cooperação de alta variabilidade contextual, as equipas de Futebol podem ser consideradas sistemas especializados e fortemente dominados pelas competências estratégias e heurísticas. Contudo, neste domínio está por esclarecer a importância da memória e das relações que esta assume com a aprendizagem e o conhecimento. Estes aspectos são determinantes para a orientação e direccionamento do processo de treino e para a condução e controlo das interacções produzidas durante o jogo.

A SUSTENTÁVEL JUSTEZA DO COLECTIVO


Escorados na tese de que as acções desportivas são reguladas por indução perceptiva e viabilizadas através das denominadas estruturas coordenativas, Júlio e Araújo, referem e adoptam a estruturação em três categorias preconizada por Karl Newell, para os constrangimentos que determinam as acções e que interagem para a produção de um padrão de coordenação, a saber: 1) os específicos do jogador; 2) os da tarefa; e 3) os do envolvimento, para além do jogo propriamente dito। Diga-se, todavia, que esta tipologia não enfatiza a importância da dimensão essencial do sistema, isto é, da faceta colectiva enquanto totalidade organizada que procura afirmar a sua identidade e preservar a respectiva integridade funcional. O jogo de Futebol, porque decorre da natureza do confronto entre dois sistemas dinâmicos complexos – as equipas – caracteriza-se pela sucessiva alternância de estados de ordem e desordem, estabilidade e instabilidade, uniformidade e variedade. Dado que se trata de situações de mudança de final aberto, o raciocínio eficaz parece estar mais relacionado com a descoberta de novos significados e o desenvolvimento de novas perspectivas. Sobretudo a partir dos anos noventa, vários autores têm salientado a necessidade de abrir novas vias de reflexão e de deixar pistas para a renovação das práticas de ensino e treino do Futebol (e.g., Gréhaigne, 1992; Garganta, 1997; Mateus, 1997; 2003; Garganta & Gréhaigne, 1999; Garganta & Cunha e Silva, 2000; Araújo, 2003; Davids et al., 2004).


O enfoque do jogo de Futebol, segundo a perspectiva de abordagem dos sistemas dinâmicos, afigura-se como uma estratégia a privilegiar। Porque se centra no estudo de múltiplas variáveis interdependentes, parece revelar-se mais consentâneo com a natureza do fenómeno em causa. Deste modo, oferece a possibilidade de identificar e regular interacções nas sequências de jogo que se afiguram representativas da dinâmica das partidas, bem como organizar e sintetizar os conhecimentos para induzir uma superior eficácia na acção.


DA MANIPULAÇÃO DE CONSTRANGIMENTOS À LIBERDADE DE (INTER)ACÇÃO


Concordamos com Júlio e Araújo, quando referem que se torna necessário identificar e manipular os constrangimentos mais relevantes para que as acções e decisões tenham maior eficácia. Os sistemas complexos e dinâmicos, como as equipas de Futebol, só se mantêm auto-organizados pela (inter)acção, pela mudança. A sua identidade, ou a sua invariância, não provém da inalterabilidade dos seus componentes, mas da estabilidade da sua forma e (auto)organização face aos fluxos acontecimentais que os atravessam. Através do treino em Futebol procura-se transmitir/assimilar, activamente, uma cultura de jogo, materializada num conjunto de regras de acção e princípios de gestão em relação com os diferentes cenários acontecimentais e, sobretudo, com as respectivas probabilidades de evolução. Do nosso ponto de vista, o processo de treino em Futebol consiste, por um lado, em criar respostas adaptativas a constrangimentos, e, por outro, em desenvolver condições para que os jogadores e a equipa possam constranger o adversário.
Pode dizer-se que o comportamento dos jogadores, num jogo, se situa numa tensão permanente entre conhecimento e acção। Considerando que o confronto desportivo ocorre em contextos de participação simultânea e de espaço comum, qualquer comportamento é fortemente condicionado do ponto de vista estratégico-táctico, portanto com claras implicações no domínio cognitivo.


CONHECER PARA (INTER) AGIR; (INTER) AGIR PARA CONHECER


Nos últimos anos, a literatura tem sugerido insistentemente que ao nível dos processos de ensino-aprendizagem e treino do Futebol, grande destaque deve ser dado ao desenvolvimento dos processos cognitivos, enquanto indutores de eficácia do rendimento desportivo.


Como sugerem Williams e Davids (1995), o conhecimento específico do jogo repousa em pressupostos cognitivos, Por outro lado, o domínio dos pressupostos cognitivos para realizar as acções de jogo, não implica automaticamente o domínio das condições motoras para as operacionalizar. Ou seja, saber quando e como executar não significa saber executar as acções em jogo, porquanto a capacidade de execução não se esgota na dimensão cognitiva, mas tem que ser viabilizada por outras dimensões, nomeadamente a energética e a coordenativa. Acresce que a perspectiva ecológica tem alertado para a necessidade de se enfatizar o papel das propriedades do envolvimento, pelo facto destas constituírem um sistema de constrangimentos e de possibilidades de acção (as affordances de J.J. Gibson, 1966), com significativas implicações no condicionamento das respostas do observador/actor.


Nesta perspectiva, o comportamento justifica-se mais pelas competências perceptivas do indivíduo, do que pela sua capacidade de armazenar soluções padronizadas na memória. Esta problemática torna-se ainda mais complexa quando se procura tratar simultaneamente as principais exigências da acção desportiva – “o que fazer” e “como e quando fazer” – na medida em que se sabe, por exemplo, que a capacidade para executar uma habilidade técnica influencia a tendência para a eleger como opção táctica na situação de jogo (French et al., 1996). Contudo, a informação disponível e a experiência conduzem-nos à ideia de que dificilmente poderemos conceber a existência de efeito de treino, ou de transfer, sem representações armazenadas na memória dos executantes. Os trabalhos do neurobiologista António Damásio constituem um importante contributo para a clarificação das relações entre conhecimento, memória, percepção e aprendizagem, nomeadamente no que se reporta às denominadas imagens mentais, conceito explanado em alguns dos seus livros, entre os quais O sentimento de si (2002). Segundo este autor, a percepção ajuda-nos a construir padrões que cartografam a interacção do organismo com o meio, os quais são edificados de acordo com as convenções do cérebro. Neste sentido, Damásio sustenta que as imagens que se criam nas nossas mentes não são facsimiles de nenhum objecto ou evento específico, mas antes imagens das interacções de cada um de nós com essas “realidades”. O que existe, de facto, não é nenhuma imagem a ser transferida do objecto para a retina e da retina para o cérebro, mas um conjunto de correspondências entre as características físicas do objecto e os modos de resposta do organismo.

Este entendimento conduz-nos à ideia de que, ao pretender explicar-se o comportamento como produto da relação directa entre percepção e a acção, se subalterniza, o papel das representações e da memória, e se descura a pertinência do raciocínio por analogia, tão importante para agir em ambientes abertos de oposição directa e participação simultânea, como é o caso do jogo de Futebol. Cabe aqui uma referência especial à relação entre o comportamento criativo e os denominados automatismos. Sabe-se que estes consistem em hábitos construídos a partir da repetição de determinadas respostas e que esta forma de funcionamento, cujo objectivo principal é economizar tempo e energia, só funciona quando o organismo já experimentou uma exposição a contextos idênticos e os registou na memória. Neste âmbito, a abordagem dinâmica da acção táctica, pode fornecer referências importantes para o esclarecimento do modo como se conjugam o vínculo às regras e princípios, e a possibilidade de se criar novas acções e interacções, isto é, de se criar e inventar novos cenários no seio do jogo.

O QUE TEM DE NOVO, E DE ÚTIL, A ABORDAGEM DINÂMICA DA ACÇÃO TÁCTICA NO JOGO DE FUTEBOL?

O jogo de Futebol é uma construção activa, na medida em que o seu desenvolvimentodecorre da afirmação e actualização das escolhas e decisões dos jogadores, realizadas num ambiente de diversos constrangimentos e possibilidades. Face a uma situação de jogo, cada jogador privilegia determinadas acções em detrimento de outras, estabelecendo uma hierarquia de relações de exclusão e de preferência, com implicações no comportamento da equipa enquanto sistema. Os elementos duma equipa funcionam numa perspectiva teleológica, na medida em que as actividades que contribuem para o êxito do processo, são organizadas em função dum fim, que pode ser alcançado a partir de diferentes condições de trabalho. Não obstante, impõe-se a necessidade de detecção e interpretação de invariantes, bem como de variações significativas.
Estas variações, por induzirem desequilíbrios importantes, constituem-se como transições de fase ou fases críticas do jogo, cuja importância é fundamental para a eficácia da dinâmica do jogo, nomeadamente no que se refere às transições defesa/ataque e ataque/defesa. Não se trata, todavia, de reduzir o jogo a uma noção abstracta de sistema, mas de procurar inteligir princípios que orientem o comportamento e definam a organização dos sistemas implicados. Tal pode ser feito através da identificação de regras de gestão e de funcionamento dos jogadores e das equipas, e da descrição acontecimental das regularidades e variações que ocorrem nas acções de jogo. As equipas, enquanto sistemas complexos, revelam propriedades cujo conhecimento nos permite desenvolver um processo de treino mais específico, e, portanto, mais ajustado às exigências da modalidade e às características do(s) modelo(s) de jogo e dos jogadores que o(s) procuram interpretar.

De tais propriedades sobressaem determinados traços, com claras implicações no mapeamento do(s) jogo(s) e, portanto, na construção de exercícios para lhe corresponder. Referimo-nos a três princípios que consideramos vertebradores da dinâmica organizacional: (1) a não-linearidade, relacionada com o facto da identidade dos sistemas em jogo não resultar de uma sobreposição de efeitos ou de comportamentos elementares; (2) a interdependência, isto é, a característica que faz com que qualquer comportamento de um dos elementos dos sistemas tenha repercussões no comportamento dos demais; (3) e a emergência, que decorre da criação de propriedades colectivas qualitativamente diferentes das competências e atribuições de cada jogador.
Os exemplos que a seguir apresentamos visam ilustrar a manifestação destes princípios no âmbito específico do Futebol:

(1) NÃO-LINEARIDADE

Por vezes paira a ideia de que, no Futebol, para se conseguir eficácia do ponto de vista ofensivo é aconselhável jogar rápida e directamente a bola para a baliza adversária, tentando lá chegar o mais depressa possível. Contudo, pode constatar-se que grande parte das vezes se consegue mais êxito quando se opta por caminhos que, embora mais longos metricamente, se tornam mais acessíveis porque não apresentam tantos, nem tão difíceis, constrangimentos. O mais importante não é, portanto, a distância métrica, mas sim a dificuldade que se experimenta para vencê-la, até se chegar à baliza adversária.

(2) INTERDEPENDÊNCIA

O tipo de organização defensiva adoptado por uma equipa pode ser determinante para a forma como esta ataca a baliza adversária e para o resultado final. Dado que o jogo é continuidade, é fluidez, não parece viável que uma equipa possa estar muito ligada a atacar, se não estiver também ligada na procura da bola. Tome-se como exemplo a noção de «encaixe», tão propalada para garantir eficácia defensiva em Futebol. De acordo com um entendimento sistémico e dinâmico do jogo, tal estratégia afigura-se negativa, pelo facto de a equipa, ao «encaixar», estar a submeter-se à vontade do adversário. Em vez de agir, apenas reage. Uma das grandes vantagens das equipas eficazes, quando não têm a posse da bola, é a permanência duma estrutura dinâmica, em equilíbrio, aspecto que garante a coordenação dos jogadores e o funcionamento em bloco. As referências defensivas são áreas, superfícies, zonas e não tanto os adversários, perspectivados pontualmente.

Conseguir uma defesa mais equilibrada, mais eficaz, que permita tirar melhor partido das mais valias do conjunto, tem a ver com o facto dos jogadores não estarem centrados em fazer a marcação a pontos físicos, mas com a marcação de espaços e da bola, partindo do pressuposto de que se valoriza mais uns espaços do que outros. Marcação é jogador, espaço, bola, tempo e, portanto, leitura da situação. Mais do que uma marcação física, ela está relacionada com um sentido que se atribui à situação em função das linhas de força e das probabilidades de evolução do jogo, considerando a respectiva interdependência, de acordo com os diferentes momentos.

(3) EMERGÊNCIA

A indução de convulsões no fluxo do jogo do oponente, afigura-se fundamental para se conseguir maior fluidez no próprio jogo e para com isso estar mais perto de concretizar do que o adversário. De acordo com os princípios específicos de jogo, quando uma equipa perde a posse da bola, deve procurar tornar o campo mais pequeno e retirar fluidez ao jogo, exactamente o contrário daquilo que a equipa adversária pretende, que é ampliar o espaço de jogo efectivo e de garantir fluidez, continuidade, no sentido de trocar a bola e criar espaços favoráveis.

Do denominado jogo “escuro” para o jogo “claro” há como que uma alteração brusca no fluxo da corrente. Quem melhor se adaptar, melhor conseguirá impor o seu jogo, o que é facilmente verificável em algumas equipas de topo. Um dos pressupostos para se jogar eficazmente tem muito a ver com a questão do primeiro tempo defensivo, i.e., logo após a perda da posse da bola. Esse tempo é fundamental, sabendo-se que não é aconselhável que os jogadores saiam ao adversário directo individualmente e por ondas. Neste caso, torna-se conveniente dispor de um ou dois jogadores, que estando mais próximos do local onde se perdeu a posse da bola, imediatamente sustenham o ataque do adversário e permitam um reagrupamento dos colegas.
Quer isto dizer que um comportamento aparentemente individual pode induzir as consequentes coberturas defensivas e o fechamento das linhas de passe mais importantes, o equilíbrio e a concentração espacial, criando-se uma dinâmica emergente que sirva os propósitos da organização colectiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A grande vantagem das melhores equipas e dos melhores treinadores passa pela capacidade de gerir o detalhe sem perder de vista o Jogo como sistema dinâmico. Por vezes, quando se procura atender ao detalhe descura-se os nexos do sistema, o que origina que na maior parte das vezes o efeito de treino não vá desaguar no “mar” que pretendemos, ou seja, não tem transfere positivo para os comportamentos e atitudes na competição. A experiência tem demonstrado que a qualidade do jogo não pode vingar com base na aplicação mecânica de combinações tácticas aprendidas e repetidas no treino. Os jogadores devem, sobretudo, confrontar-se com a evolução das configurações do ataque, da defesa e das transições, considerando os distintos níveis de organização, do 1x0 ao 11x11. Consequentemente, o recurso ao raciocínio baseado na perspectiva dos sistemas dinâmicos parece constituir o caminho mais ajustado para tratar eficazmente os problemas postos pela interacção específica das duas equipas.

Ao afinar pelo diapasão da abordagem dinâmica da acção táctica é possível enfatizar a importância do treino específico, a partir da oposição e da imprevisibilidade, enquanto factores de evolução. Tal entendimento vem conduzindo a que no treino do Futebol faça cada vez mais sentido o recurso a exercícios que provoquem uma mobilização importante das capacidades perceptiva e decisional, em contextos de diversificados constrangimentos e possibilidades. Esta estratégia de intervenção induz o desenvolvimento de comportamentos mais versáteis, permite alargar o espectro de respostas e prepara os jogadores para lidarem com situações não convencionais. É um tipo de enfoque que, ao privilegiar a oposição e a gestão da imprevisibilidade como fonte de evolução, reabilita o jogo como elemento fundamental de aprendizagem e possibilita perspectivar o treino enquanto espaço de autonomia. Em síntese, permite "devolver o jogo aos jogadores".

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Abraço
Luis Esteves

2 comentários:

João Henrique T.L.C disse...

Ótimo tópico, Luís, já tinha lido um pouco sobre essa parte de enquadrar o futebol como sistema, mas da maneira que colocaste deu para compreender melhor. Em relação a treinar situações especificas levando em consideração o fator aleatoriedade, seria mais ou menos o que faz o Mourinho, né?
O texto também aborda levemente os princípios de jogo, relacionado a isso e fugindo um pouco queria te fazer uma pergunta. O princípio de cobertura ofensiva diz que é necessário dar apoio ao portador da bola oferendo-lhe opções para dar sequencia ao jogo enquanto que o princípio de espaço preconiza a busca incessante dos jogadores, sem a posse de bola, por posicionamentos mais distantes do portador da bola. Ou seja, um princípio vai totalmente contra o outro, agradeço se puder me ajudar.
Abraço!

Luis Esteves disse...

Fala professor,
sim, seria, na verdade a periodização tática trabalha com isso pela forma como coloca o treino, em situações de jogo e da complexidade real, dentro dos moldes do modelo.

Não entendi a pergunta dos princípios, mas uma coisa não pode ocorrer, nenhum princípio pode ir de encontro a outro, isso gera um conflito no jogador, não ocorre evolução no modelo, pois um atrapalha o crescimento do outro.

Abraço