Segunda parte da entrevista com o professor Jorge Maciel.
________________________________
16. Luis Esteves: Como o professor vê a utilização de diferentes métodos (visual, auditivo e cinestésico) para atingir o melhor entendimento dos jogadores?
Jorge Maciel: São muito importantes, sobretudo as imagens no sentido de sintonizar e tornar objectivável o que se pretende. Curiosamente na recente experiência que tive na Líbia tive a confirmação que de facto assim é. Aquela que foi para mim a melhor aula de língua árabe enquanto lá estive consistiu numa ida ao hipermercado com o motorista. Foi muito engraçado, pois foi o momento em que aprendi mais palavras árabes, porque apontava ou pegava num determinado produto e perguntava qual era o nome em árabe. O facto de poder ter persente a imagem ou o objecto tornava muito mais fácil a sua identificação e a familiarização, praticamente sem qualquer margem de erro, com a designação árabe do mesmo. Era algo de concreto, palpável. E penso ser uma analogia muito significativa para aquilo que pode representar o recurso a diferentes meios, no sentido de nos identificarmos com determinada realidade, sobretudo se for uma realidade que é novidade para nós, como era o caso da língua árabe para mim.
Na Líbia tínhamos talvez como principal barreira a comunicação verbal, como tal tivemos de recorrer a vários meios. Usava-mos muito os vídeos, mas também explicações no terreno com ajuda de pranchetas ou o que achávamos necessário. E além disso marcávamos a nossa intervenção por uma grande gestualidade. Comunicávamos muito com o corpo e tínhamos a preocupação de ter muita atenção para perceber se o grau de sintonia e identificação manifestado pelos jogadores era o mais conveniente ou não. Por isso, entendo que de facto são muito importantes todos os meios que nos possam auxiliar a passar a mensagem pretendida, mas não menos importante é ter a preocupação de perceber se a mensagem está a passar, e a sensibilidade para detectar se a mensagem que passa condiz ou é interpretada em sintonia com o que desejamos. É por esse motivo, que a prática se torna fundamental, devendo ser sempre o primado. Além disso o uso de tais instrumentos deve fazer-se tendo muita sensibilidade relativamente à qualidade da mensagem, o que se transmite e como esta é recebida, mas também tendo sensibilidade em relação à dosagem da mensagem. Quero com isto dizer que devemos recorrer a estes meios mas sem massacrar ou saturar os jogadores, porque se tal acontecer a receptividade será diminuta e passamos para uma conversa de surdos.
17. Luis Esteves: Qual a opinião do professor sobre os treinos coletivos, 11x11 (de conjunto em Portugal)?
Jorge Maciel: Se, se fizerem por tradição acho que é o fomentar de um mito. Mas se pelo contrário tiverem outros propósitos, desde que o treinador saiba quais, e como os enquadra na dinâmica de esforço recuperação semanal, não vejo grande problema, se de facto entender que é importante. Por exemplo, na Líbia nós tínhamos um plantel muito grande, chegamos a treinar com 32 jogadores, e quando chegamos o nosso conhecimento das potencialidades dos jogadores era nulo, foi se tornando maior à medida que os treinos e os jogos se foram desenrolando. Por tudo isso, decidimos que no dia a que se seguia a competição oficial se realizaria sempre que possível um jogo para os jogadores não utilizados, geralmente com equipas de segunda divisão. A realização destes jogos era muito importante e tornou-se fundamental para a necessidade de rotatividade que fomos tendo. Em 10 jogos não repetimos um onze titular, porque havia selecções, jogadores suspensos devido a cartões amarelos, lesões e além disso jogadores que graças a esses jogos nos mostraram que poderiam ser soluções face a determinado tipo de problemas que a equipa poderia enfrentar. Ou seja, foi mais um meio para conhecermos melhor o plantel e as particularidades de cada jogador. Além disso devemos ter consciência que um dos aspectos que mais deve preocupar um treinador é o estado anímico e funcional dos jogadores que não são titulares. E a adopção destes jogos foi muito importante também a esse nível. Os jogadores empenhavam-se bastante e encaravam estes jogos de forma muito séria, porque sentiam precisamente isso, ou seja, que o desempenho que naqueles momentos revelassem poderiam pesar nas escolhas que se seguissem nos jogos oficiais seguintes, e aliás nós fazíamos questão de salientar isso. E podíamos fazê-lo porque apesar de se tratar de um plantel grande era um plantel equilibrado em termos qualitativos, ainda que mal estruturado ao nível do número de jogadores por cada posição.
A realização destes jogos foi uma óptima estratégia metodológica, porque nos permitiu ver e conhecer melhor alguns jogadores em competição, acelerar o nosso conhecimento em relação ao que podíamos esperar deles e o que nos poderiam dar, e também acelerar a identificação deles com as nossas ideias e com o nosso processo de treino. Nesse sentido tínhamos uma intenção clara e que nos ajudou imenso, porque a competição, mais formal, não era descurada e todos tinham possibilidade de ter um momento de competição regularmente, a qual era devidamente enquadrada na nossa lógica de alternância. Tínhamos atenção a alguns aspectos no sentido de controlar o tempo de participação nestes jogos de alguns jogadores, por exemplo os jogadores que jogavam alguns minutos na véspera apenas faziam meia parte ou pouco mais que isso, os jogadores que não tinham jogado mas que tinham sido titulares ultimamente, e como tal tinham maior densidade também raramente jogavam o tempo todo. E o mesmo sucedia com alguns jogadores que regressavam após lesão prolongada, e havia vários quando lá chegamos. Estes jogos eram muito importantes para esses jogadores, porque lhes permitia um momento que eles encaravam de forma ainda mais séria que o treino, mas com a tranquilidade de ainda não ser a verdadeira competição. O que é um aspecto muito relevante, porque os jogadores quando recuperam de lesões que os impedem de estar disponíveis durante algum tempo têm muita necessidade de sentirem que são capazes, porque se sentem inseguros e de certa forma desconfiados relativamente à sua verdadeira condição. Então nós servíamo-nos destes jogos para que esses jogadores fossem progressivamente integrados em situações de carácter mais competitivo, adquirissem confiança e se sentissem seguros. Porque muitas vezes mais grave que a lesão é a cisma que o jogador sente e que o leva a pensar que ainda não está bem. Com estes jogos, e aumentando progressivamente o tempo de intervenção destes jogadores conseguíamos mais facilmente mostrar-lhes que estavam recuperados. Do mesmo modo, era importante porque os jogadores sentiam que estavam preparados, a todos os níveis, para entrar a qualquer momento. Muitas das vezes, quando não jogam regularmente receiam poderem estar com défices do ponto de vista físico, para muitos deles essa é mesmo a principal razão pela qual não jogam, porque foram habituados nessa lógica. E a realização destes jogos ajuda-os a sair dessa ilusão e prova-lhes que treinando bem, da forma como o fazemos, não precisam de qualquer tipo de treino exclusivamente físico. Essa foi mais uma constatação que pude reter, inicialmente quando lá chegamos alguns pediam para dar umas corridinhas ou fazer outro tipo de coisas por pensarem que a razão para não jogarem passava por possíveis défices do ponto de vista físico. Quando tal nos era solicitado, tínhamos sensibilidade para perceber precisamente porque sentiam tal necessidade, pois só desse modo poderíamos desmontar essa mesma necessidade. Falávamos com eles e explicávamos-lhes que se treinassem bem se, se empenhassem nas situações de treino não sentiriam qualquer necessidade de após o treino fazerem o que quer que fosse. A verdade é que passado menos de duas semanas já ninguém solicitava o que quer fosse, e sentiam-se bem com aquela forma de treinar e aptos e confortáveis quando eram chamados a participar em competição, independentemente da utilização ser maior ou menor nos jogos anteriores.
No entanto, julgo que o propósito que leva os treinadores a realizarem a meio da semana de treinos os ditos treinos de conjunto nada tenha a ver com as preocupações que fui referindo. E aliás um aspecto muito relevante passa pelo enquadramento que estes treinos por norma têm na semana de treinos. Um enquadramento por vezes desajustado, por não respeitar o necessário tempo de recuperação relativamente ao momento de competição imediatamente anterior, ou noutros casos relativamente ao momento competitivo que se segue, ou até mesmo relativamente a ambos. Aí penso que se trata de uma opção por um treino generalista, que revela o não entendimento daquilo que representa a fractalidade do jogar, sendo inclusive frequente ouvir-se os treinadores que o fazem argumentar que “não há nada mais específico que o 11x11”. Nesse tipo de treino a propensão para o caos se tornar caótico é claramente maior do que a que se verifica num treino que segue os referenciais de alternância da Periodização Táctica no qual se abordam os grandes aspectos relativos do nosso jogar. Nesse caso, a modelação dos contextos permite-nos muito mais incidir sobre o que mais pretendemos em função da hierarquização estabelecida para aquela semana e em particular para aquela sessão, por isso mesmo, porque modelamos e conseguimos gerir melhor o aqui e agora que num simples conjunto, a propensão vai muito mais no sentido de fazer emergir um determinado caos determinístico.
18. Luis Esteves: Como se dá o processo de criação de exercícios na sua visão? Quais as preocupações que tem e que parâmetros utiliza?
Jorge Maciel: O processo de criação de exercícios, conforme se depreende de muito do que já referi resulta da contemplação de muitos aspectos, fundamentalmente relacionados com o que treinar, ou seja, com a matriz conceptual, e também relacionados com o como treinar, isto é, relacionados com a matriz metodológica do processo. Um pressuposto fundamental passa por saber o que se deseja treinar, e isto em termos gerais, tem a ver com o jogar que queremos parir, mas também em termos de maior pormenor como por exemplo equacionar o que fazer em cada dia. Os parâmetros que utilizo são; escalas do jogar a vivenciar na unidade de treino em questão (grandes, sub e subsub princípios), os níveis de organização da equipa (individual, sectorial, grupal, intersectorial, colectivo), o padrão de contracção muscular dominante, o espaço, o tempo tanto de exercitação como de repouso, os efectivos numéricos implicados em cada situação, a necessidade de recuperar dos desempenhos de treino e de competição, o assegurar do padrão metabólico dominante desejado, o desgaste emocional… pois é tudo isto que nos vai permitir dar uma configuração ao treino que nos leve para as dinâmicas desejadas para cada dia do Morfociclo. E consequentemente, respeitar e operacionalizar convenientemente o Principio da Alternância Horizontal em especificidade. Depois a minha criatividade na criação ou até “roubo” de exercícios deve também respeitar o Princípio das Propensões, para que através do treino eu consiga potenciar o que desejo, e permitir que aquilo que desejo venha acontecer, aconteça com regularidade. E claro, eu tenho de perceber que a minha criatividade deve ter em consideração a minha realidade, e o estado de maturação dessa mesma realidade, isto é o estado de maturidade que o processo evidencia e o nível de adaptabilidade dos jogadores ao mesmo. E aqui está manifestamente presente o Principio da Progressão Complexa. É um aspecto muito importante, para a calibragem dos exercícios e para que as rotinas não caiam em rotina, e estar consciente e saber o grau de habituação relativamente ao processo, aos exercícios (ao nível da configuração, da duração, da dinâmica desejada…) Por exemplo, e relembrando, enquanto estivemos na Líbia, e de modo mais evidente nos primeiros tempos, não variávamos muito os exercícios porque a identificação dos jogadores com o processo era ainda recente. Tínhamos de ter sensibilidade para não hipotecar a progressão do processo, devido ao desejo de inovação. Era naquele contexto uma necessidade, e se não atendêssemos a isso, o que possivelmente representaria perda de relação com o que já tinha sido feito, correríamos o risco de entrar num processo de iniciação continua. Nós tivemos que os habituar a uma forma de treinar, inicialmente sem diversificar muito, ainda que respeitando a necessidade de alternância horizontal. Não podíamos variar muito devido à precocidade do processo, à existência de uma habituação contrária à que estávamos a levar a efeito e também porque tínhamos limitações de comunicação. Este último aspecto, teve um grande peso na configuração dos exercícios, pois motivou que tivéssemos que ter grandes preocupações, no sentido do que fazíamos ser bastante funcional e de o exercício ter necessariamente que ser propenso ao desejável. A nossa intervenção, embora não feita em língua árabe, não deixava de estar presente, através do inglês, da emotividade e fundamentalmente através de muito linguagem corporal. O exercício sendo importante, e potencialmente catalisador do que desejamos, necessita obrigatoriamente de uma intervenção conforme, porque senão, a coisa rola, mas pode rolar de muitas formas e muitas das quais contrárias e contraproducentes com o que desejamos. Reforço por isso a ideia que o exercício por si só não basta ele é potencialmente aquisitivo ou catalisador de aquisição, mas depois há que o alimentar para maximizar as suas potencialidades. E o exercício é alimentado pela qualidade de intervenção, gestão da qualidade dos desempenhos, dos tempos de exercitação e de recuperação, componente emocional… Por isso é que com os mesmos exercícios se obtém resultados muito diversos.
19. Luis Esteves: Que preocupação tem com os tempos de exercício e os tempos de recuperação?
Jorge Maciel: Esse é um aspecto muito importante, e que por vezes as pessoas que se dizem identificadas com a Periodização Táctica ignoram ou não lhe concedem a devida relevância. Muito erradamente algumas pessoas que se tentam identificar com a Periodização Táctica enfatizam excessivamente a dimensão aquisitiva do processo, mas negligenciam a dimensão bioenergética e motora que o suporta. É um erro, porque se de facto é importante que os jogadores saibam como jogar e estejam identificados com um jogar, não é menos importante criar condições que lhes permitam manifestar esse jogar com qualidade. E para o fazerem é fundamental que a dimensão metabólica e motora subjacentes á manifestação de um jogar sejam equacionadas no processo de treino. Eu não posso querer uma equipa cheia de boas intenções, eu quero uma equipa que seja capaz de concretizar tais intenções, e só é capaz se em cada individuo, através da vivenciação de referenciais colectivos em contextos diversos, se instalar uma adaptabilidade a todos os níveis (aquisitivo – bioenergético - funcional…), que o permita. Para que tal adaptabilidade se instale a relação entre os tempos de exercitação e de recuperação é determinante. Essa relação, sendo diferenciada em cada dia faz com que a descontinuidade em cada unidade de treino seja a desejada. Descontinuidade que é fundamental, conjuntamente com outros parâmetros, para assegurar a presentificação das subdinâmicas dominantes de cada dia, e não menos importante para que o organismo experimente uma espécie de resiliência biológica, necessária à sua maximização e consequentemente à maximização do todo. Esta noção de resiliência metabólica tem a ver com a necessidade de fatigar aquando da exercitação, para que posteriormente se instale no organismo um estado de transcedência, após a necessária recuperação se estabelecer. Isto implica de facto, conceber o Corpo e as suas partes constituintes e prestativas como uma estrutura dissipava capaz, pela confrontação e interacção com o contexto, de aspirar e evoluir para formas superiores. Mas isso só é possível se eu permitir que pós exercício os tempos de recuperação sejam devidamente respeitados, isto é, permitam que o organismo não volte a ser estimulado e a estar implicado com índices de fadiga acentuados e perpetuados.
Eu devo também ter em consideração que do modo como faço a gestão entre tempos de recuperação e de exercitação, resulta uma determinada adaptabilidade metabólica. E a incidência sobre uma determinada matriz metabólica dominante no meu processo de treino deve ter relação com a matriz metabólica que eu quero que a minha equipa manifeste quando joga. O que quero com isto dizer, é que se em termos ideiais eu desejo que o meu jogar tenha muitas variações de velocidade, com pausas, elevada intensidade metabólica mesclada com instantes de baixa intensidade metabólica, à semelhança do que sucede com os jogares de TOPTOP, como o Barcelona, então o meu processo tem de respeitar esta matriz metabólica. Daí que se a minha opção for um jogar deste género, e tendo em consideração que os sistemas energéticos funcionam em simultâneo ainda que com dominâncias diferentes, o meu processo de treino deve dominantemente permitir que os contextos de exercitação incidam dominantemente sobre o sistema metabólico dos fosfagénios. Pois é este que salvaguardados devidamente os tempos de repouso, não me hipoteca a potenciação concomitante dos demais sistemas energéticos e me permite que a adaptabilidade metabólica que emerge seja a que eu desejo e por conseguinte também emirja a adaptabilidade anatómica e funcional que este tipo de jogar tem implicadas. Somente se o processo incidir sobre este padrão metabólico se torna possível que a adaptabilidade incorporada seja essa e não outras, não raras vezes contraproducente relativamente ao que desejo para o meu jogar, e em muito devido ao não respeito da relação necessária entre os tempos de exercitação e os tempos de recuperação.
O reconhecimento da necessidade dos tempos de recuperação, não deveria ser estranho para quem treina de formas mais convencionais, no entanto, parece que não é o que se verifica. E o motivo é simples, institucionalizou-se a necessidade de treinar muito e de treinar cansado, mesmo que isso implique contrariar princípios de treino tidos como fundamentais nessas metodologias. Convencionalmente reconhece-se aos tempos de recuperação uma grande relevância, naquilo que em termos convencionais se designa “prémio de pausa”, e que suporta a ideia de sobrecompensão após um organismo ser submetido a um estimulo. Após a administração de um estímulo, convencionalmente designado de “carga”, verifica-se se a recuperação for contemplada, a chamada fase de exaltação, na qual se dá um estado optimizado do organismo. O que vai de encontro à ideia que referi anteriormente de resiliência metabólica ou se quisermos orgânica. Torna-se evidente, que mesmo aspectos tidos como basilares da teoria do treino, se devidamente interpretados se constituem como as suas principais fontes de refutação, e simultaneamente de sustentação inequívoca da Periodização Táctica.
20. Luis Esteves: Se possível exemplifique em cada dia que tempos utiliza e os tempos de recuperação:
Jorge Maciel: Também aqui faz sentido falar em singularidade do processo, pois os tempos de exercitação não devem ser tidos como uniformes para qualquer processo. Pode até ser pernicioso, para mim que os refiro, e também para quem depois possa ler tais referências. Porque aqueles tempos para o meu processo, podem ser ajustados, mas para outro processo serem totalmente desajustados. E no que é que isso pode resultar, numa adaptabilidade que emerge e que não respeita o que referi na questão anterior. Eu compreendo a questão, e de certa forma até a considero pertinente, se é relevante, então que tempos devo utilizar?! Não é. No entanto, acaba por ser praticamente a mesma coisa que chegarem junto de mim e dizerem; «para treinar isto que exercício usas?!» E eu dou um exercício que faço, e depois a pessoa que me perguntou usa-o, mas não funciona porque se esquece que eu o faço porque os jogadores estão englobados num processo que o permite. Estão habituados ás dimensões do espaço de exercitação, têm qualidade para o fazer, aquele exercício resulta da vivenciação passada de situações semelhantes e que foram sendo complexificadas e nuanciadas… E nos tempos de exercitação a coisa sendo diferente, e com escalas de variação possivelmente menores, não é necessariamente muito diferente. Volto a repetir, que as pessoas procuram na Periodização Táctica receitas, mas não encontram porque cada processo é singular, cada um faz o fato à sua medida, por isso é uma asneira querer receitas, cada um tem de ser o cozinheiro do seu próprio jogar. Não obstante, sendo uma metodologia fornece, como já salientei orientações para fabricar o jogar, Princípios Metodológicos. Mas aspira muito mais a ser a arte das trajectórias que a teoria dos alvos, daí que se norteie pelo ditado chinês que sugere que não se deve dar o peixe, mas antes a cana e ensinar a pescar.
Depois repare-se, eu poderia dar algumas referências de tempo, mas isso também depende bastante da própria configuração dos exercícios. Se eu faço um exercício jogado o tempo será necessariamente diferente de uma situação em que a exercitação se faz por vagas, ou de um treino em estrutura holandesa etc., etc., etc…. Há exercícios que pelo modo como se realizam asseguram-me o tempo de recuperação, outros não, são mais contínuos ainda que a intervenção dos que nele estão implicados seja intermitente.
Aquilo que me parece mais ajustado, no sentido de dar a cana e ensinar a pescar, é caracterizar os diferentes dias do Morfociclo em termos de densidade. Densidade como sendo a relação proporcional entre o tempo de exercitação e o respectivo repouso. Por exemplo 1/3, sugere que a cada tempo de exercitação correspondem 3 de repouso. No entanto, devemos ter consciência que a densidade sugerida serve exclusivamente como um referencial geral que visa padronizar as dominâncias metabólicas requeridas, e que faz sentido se a Intensidade de treino se revelar de facto como tal. Estes referenciais não devem ser encarados de forma estanque e deverão ter em consideração muitos aspectos, como a maior ou menor precocidade e habituação a um processo de treino ou até a própria configuração dos exercícios, conforme já salientei. Assim, de uma forma geral podemos conceber para a terça feira uma densidade de 1/8 – 1/9, para quarta-feira de 1/4, para quinta-feira de 3/1 – 4/1, para sexta-feira de 1/8 – 1/9 e para sábado de 1/10.
Quanto á gestão dos tempos de exercitação, importa ter em consideração que quanto mais rápida a estimulação também será a recuperação desse desempenho. No entanto, considero que mais importante que definir taxativamente tempos é deduzir subjectivamente os níveis de fadiga dos jogadores, porque o que se pretende é que eles se exercitem continuadamente sem índices de fadiga não recuperados e não permitindo incidir dominantemente sobre o padrão metabólico desejado. Nós podemos deduzir os índices de fadiga dos jogadores através de indicadores indirectos como a respiração, o modo como conseguem ou não falar, o decréscimo de rendimento. Devemos estar permanentemente atentos a estes aspectos, pois só salvaguardando que a fadiga não se reinstala, é que se torna possível incidir sobre a matriz metabólica desejada, uma gestão que se faz com muita sensibilidade e também ela na fronteira do caos, e na qual que mais vale pecar por defeito do que por excesso.
21. Luis Esteves: Qual a importância das emoções no processo da habituação? Como o professor gere o processo da emoção no treino?
Jorge Maciel: A emoção sabe-se hoje através das neurociências que são determinantes em qualquer processo de habituação e de aprendizagem. Mas mesmo empiricamente, podemos ter alguma percepção sobre o grau de relevância que as emoções têm em várias aprendizagens que fomos adquirindo ao longo da vida. As nossas vivências foram sendo marcadas emocionalmente como nos explica a tese dos marcadores somáticos. Mais que isso, sabe-se que o mapeamento das emoções tem repercussões notórias na nossa postura, ou seja, naquilo que somos e no modo como interagimos com o que nos rodeia. Face a isso num processo de treino, cujo intuito é a habituação e aquisição de uma determinada realidade através da sua vivenciação modelada, o papel das emoções é determinante. E deve estar presente em quem aprende e em quem ensina. Não concebo uma realidade em que a interacção humana esteja presente, sem qualquer tipo de emotividade. O treino não pode ser emocionalmente neutro, a emoção, aspirante a sentimento, deve ser parte necessária do contexto em que se desenvolve o processo.
A emoção e um conceito plural, capaz de se manifestar de várias formas e inclusivamente de forma antagónica, por isso também a emocionalidade presente no processo deverá ter o viés que queremos dar ao processo. O treinador deve envolver-se emocionalmente no treino, mas deve ter consciência da sua emocionalidade e fazer com que esta seja convergente com o que pretende. Deve aculturar o seu subconsciente para que mais facilmente e coerentemente aculture o dos jogadores. Para isso deverá reflectir continuadamente sobre o processo, para que os modelos implícitos estejam em sintonia com os seus modelos explícitos. Naõ deve deste modo haver da parte do treinador conflitos emocionais, digamos assim. Se houver, poderão ser facilmente apreensíveis através de incoerências ao nível da intervenção sob pressão, mas também através de condutas bem menos evidentes. O que sucede por exemplo quando o discurso não condiz verdadeiramente com as suas convicções. Sabe-se a este respeito que temos a possibilidade de contágio emocional à distância, conforme demonstram os corpos morficos, por isso qualquer indício de incoerência, consistência ou de insegurança poderá ter repercussões sobre o grupo, sobretudo se as ligações que com os seus membros estabelecemos são fortes. Por tudo isso penso que o melhor modo do treinador gerir a sua emotividade é, tendo consciência da mesma, e no processo de treino manifestar paixão pelo que faz, pelas suas ideias e pelo jogo de uma forma geral. Se for espontâneo ao fazê-lo conseguirá contagiar os jogadores, que por sua vez em tal contexto emocional induzido pelo treinador se sentirão mais receptivos para o processo. É fundamental assegurar que o processo permite aos jogadores sentirem prazer e satisfação ao treinar, pois há um pressuposto muito básico que quem ensina deve ter em consideração, só se aprende o que se quer. E quando nos sentimos bem com algo é mais fácil querer. Por isso é que o treino não pode ser castigo.
22. Luis Esteves: Qual a importância da Velocidade no futebol atual?
Jorge Maciel: Depende do que se entende por velocidade, pode ser determinante, e pode ser um equivoco. A velocidade é para mim um conceito polissémico, tem vários significados, ainda que normalmente esteja associada exclusivamente à velocidade de deslocamento, muito por força do contexto cultura instalado, um contexto onde a vertigem da pressa faz escola e nos afecta subconscientemente e infelizmente de forma cada vez mais precoce. E sendo o futebol um bom espelho da sociedade isso verifica-se no modo como vivenciamos o jogo, cada vez mais frenético e sem lucidez, e no modo como o concebemos e compreendemos, ou seja, acabamos por não tomar consciência do quão perniciosa é esta vertigem para a qualidade de jogo.
Quando falamos em velocidade temos de ter noção que estamos a tratar de um conceito plural e que como tal pode ter subjacente um significado muito diferente daquele que à partida é o mais comum. Podemos falar mais correctamente da velocidade da bola, de execução, de decisão, de deslocamento, de reajustamento… Mas sendo o futebol uma modalidade que implica coengendração entre as várias velocidades e entre estas e o envolvimento que requisita e despoleta as suas manifestações, torna-se necessário que estas tenham um cunho qualitativo e permitam dar as respostas ajustadas às circunstâncias. No futebol a noção de timing é capital para a sua concretização com qualidade, e refiro-me ao timing de efectivação, de antecipação e de articulação entre as diferentes estruturas implicadas no acto. Portanto a velocidade é de facto um aspecto determinante no futebol actual, mas não a velocidade linear, tem de ser uma velocidade com curvas, rectas, travagens, acelerações, desacelerações, e tudo isto em conformidade com o que a cada instante o jogo e o jogar requisitam.
Paradoxalmente a velocidade só faz sentido se contemplar a existências de pausas, caso contrário não é distinta nem um aspecto diferenciador em termos qualitativos. Repare-se no caso do Barcelona, é talvez a equipa que mais velocidade coloca no jogo, porque pela dinâmica que apresenta e identificação ou incorporação com tal intenção, joga espontaneamente e de forma regular a um toque. E jogar a um toque, com sucesso, é para mim a melhor expressão do que deve ser a velocidade máxima no futebol, pois implica velocidade na bola, na interacção agindo fazendo, e no constante ajustamento dos jogadores que tal dinâmica implica. O Barcelona é de facto um exemplo muito bom daquilo que deve, para mim, ser a velocidade e do que lhe deve estar subjacente. Apesar de ser a equipa que mais facilmente e com qualidade, isto é com critério, acelera o jogo é também a equipa que mais o pausa, tem variabilidade de ritmos e de velocidades, conseguindo-o fazer sem perda de critério na identificação dos instantes em que deve acelerar o jogo. É de facto uma equipa inteligente, que joga com critério com toda a caixa de velocidades, e como é um “carro” de TOP tem mais que as habituais seis velocidades. O jogar de qualidade joga-se a 4 dimensões, e o Barcelona percebe essa necessidade melhor do que qualquer outra equipa. Tem inteligência para gerir bem a relação EspaçoTempo, percebe que parando pode alargar o tempo e ganhar espaço para acelerar e colocar a velocidade necessária no jogo.
23. Luis Esteves: José Mourinho como grande representante desta forma de pensar o treino, diz que utiliza a Descoberta Guiada como processo de ensino no treino, porém nota-se na literatura divergências quanto a forma de utilizar este método, alguns autores afirmam que a intervenção do treinador deve ser no momento do erro, não deixando que o mesmo ocorra novamente, já outros autores acreditam que o jogador deva perceber o erro, e através de intervenções específicas questionam os jogadores em busca de um denominador comum porém já definido pelo treinador, qual a opinião do professor sobre isso e como o professor define a Descoberta Guiada? Se possível exemplifique em determinado contexto:
Jorge Maciel: A descoberta guiada no caso do treino de futebol passa por eu criar num grupo uma necessidade que vou continuadamente alimentando e complexificando. Uma necessidade que tem uma intencionalidade, que à partida não têm de reconhecer, mas para a qual devem ser incitados a caminhar. Trata-se portanto de lhes criar um desejo pelo desconhecido, mas um desconhecido que eu quero sobredeterminar, daí que o modo como eu o vou alimentando deva ser sobredeterminado pelo que eu quero que eles descubram. A descoberta guiada é uma estratégia metodológica a que eu devo recorrer para permitir que os jogadores estejam mais implicados na construção e criação do jogar, e para que consequentemente o sintam mais como um projecto seu, para o qual contribuíram ao nível da elaboração da sua lógica, pois foram levados a isso, e desse modo mais facilmente se identifiquem com esta, a incorporem. Torna-se deste modo relevante na aspiração que temos em tornar concomitante o saber fazer com o saber sobre esse saber fazer.
Quanto ao modo de levar a efeito esta estratégia metodológica, penso que não faz sentido estabelecer regras, ou catalogar o que fazer em que circunstâncias. É um aspecto que requer o Sentido da Divina Proporção, e que nos deve fazer inclusive ponderar se em todos os contextos e circunstâncias fará sentido recorrer a esta estratégia. Penso que devendo ser uma estratégia fundamental, e de que me devo socorrer devo também ter consciência que ela poderá não se ajustar para certos conteúdos a adquirir e pode não se justificar em determinados momentos e circunstâncias. E eu como treinador é que tenho de saber perceber e ter sensibilidade para identificar quando a utilizar ou abdicar em detrimento de estratégias de maior deposição de saber do que de descoberta de saber.
24. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da musculação, que alterações podem provocar os exercícios em máquinas na propriocepção muscular?
Jorge Maciel: Considero que de uma forma geral a musculação é desnecessária para se jogar futebol. E aqui não estou a contemplar a possibilidade de haver jogadores com patologias, ou até mesmo a necessidade de nós termos sensibilidade para perceber que há jogadores que fruto da sua habituação a fazerem-no têm necessariamente que o fazer, pois caso não o façam sentem-se desconfortáveis. Mas também nesses casos a nossa intervenção deverá ser no sentido de diminuir e quem sabe abolir com tais necessidade subconscientes somatizadas.
Mas quando digo que não considero a musculação como algo de fundamental para se jogar futebol, parto do princípio que agindo nós com base em padrões de reconhecimento, a única forma de o fazer é treinando, jogando no terreno de jogo, exercitando em contextos propensos ao emergir do que considero relevante para o meu jogar. É nisto que acredito, e penso que com fundamento.
A musculação procura retratar uma realidade irreal, é um contexto postiço, desde logo porque não permite estar em relação com a bola e o contexto de jogo, por isso terá necessariamente perdas. A propriocepção é algo concreto, contextual e os estímulos que emanam do contexto de jogo não são passíveis de serem reproduzidas numa sala de musculação. A propriocepção tem a ver com a configuração acontecimental da circunstâncias, com o modo como eu as identifico e interajo com esta, com o modo como me ajusto e nalguns casos reajusto para poder agir ou antecipar em conformidade com o que aquela solicitação exige. Eu entendo o Corpo como uma realidade inteligente, que como tal carece de ser aculturada. Trata-se inegavelmente de uma realidade plástica, sobre a qual o treino pode actuar. Mas que treino?! Para mim a plasticidade tem de rimar com selectividade e consequentemente com Especificidade. Nós tornamos-nos selectivos pelo que fazemos, assim como a adaptabilidade que imana do que fazemos tem a ver com essa selectividade. Se o meu processo de adaptabilidade actua sobre a plasticidade num determinado sentido, ou de uma determinada forma, é essa a modelação que eu vou conferir ao Corpo. Portanto se é em função de um jogar, que eu aspiro que a adaptabilidade se instale nos Corpos que compõem a minha equipa, a selectividade do processo tem que ir nesse sentido, e só assim é se norteado pela Especificidade, pela vivenciação continuada de um jogar respeitando os Princípios Metodológicos. Repare-se por exemplo no insucesso que tem sido a tentativa dos principais jogadores de futsal e de futebol de praia se tornarem jogadores de futebol de onze. E porquê?! Porque a adaptabilidade necessária a todos os níveis é significativamente diferente, requer timings diferentes e um ajustamento e formas de interacção diferentes com o contexto envolvente, e que não permitem que o desempenho de excelência que têm no futsal ou no futebol de praia, não se verifique com o mesmo nível de expressão no futebol de onze. E estamos a falar de coisas que em termos gerais são muito semelhantes, mas que como se verifica delas resultam adaptabilidades bem diferentes, agora imagine-se o que sucede quando parte do processo se destina à musculação e a uma preparação física descontextualizada?!
Reforço a ideia que adaptabilidade é uma emergência decorrente daquilo que faço regularmente e em função disso mesmo. E eu tenho que saber que as repercussões que isso assume, assim como as respectivas implicações se verificam a inúmeros níveis. E não menos relevante, sei também que ao interferir sobre uma poderei modificar de forma muito significativa a coordenação entre estas partes que constituem um todo tão complexo. Um todo que é um determinado se for de um modo, e que será outro se for outro o modo de o levar a efeito. Com a agravante de se tratar de um todo altamente complexo, isto é, extremamente sensível às condições iniciais. Adaptabilidade tem de ser adquirida pela vivenciação em Especificidade, é dessa que resulta a adaptabilidade orgânica que eu quero e que me permite que cada jogador e consequentemente a equipa revele uma adaptabilidade funcional e intencional comum. E isto a todos os níveis, ao nível da intencionalidade e do critério na decifração das escolhas mais ajustadas face ao contexto, mas também ao nível do que me permite a concretização dessa dimensão, isto é, a gestualidade e o metabolismo têm de ter adaptabilidades conformes. Tudo isto é interactivo e o nosso Corpo necessariamente tem de o Incorporar interactivamente e através da decifração contextual daquilo que se constitui como estímulo específico.
Para se perceber um pouco como o nosso Corpo é complexo e para se perceber o quanto é complexa a sua modelação, e a sua especificidade proprioceptiva em função do que se habitou a fazer, vou salientar uma história que pode ser pertinente. Recentemente um amigo meu comprou um carro novo, e contrariamente ao carro que tinha anteriormente e que conduziu durante anos, este era automático. Ele contou-me que inicialmente foi para ele um enorme conflito, porque andava sempre à procura do pedal da embraiagem. Ele sabia que o carro era diferente, mas o Corpo ainda não estava aculturado para a diferença, porque não a havia vivenciado o suficiente.
Aproveito esta questão para tentar tornar presente nas pessoas a consciência que a musculação, resulta de uma necessidade criada devido a interesses comerciais. O que me parece é que o fomentar da musculação se deve fundamentalmente a interesses comerciais e tem por trás muito investimento, mas não menor retorno para as áreas médicas. A musculação como o doping formam um conjunto de necessidades impostas que servem para algumas da principais indústrias mundiais, medicina e farmacêutica, exponenciarem os seus lucros. A prova evidente disso passa por ver quem promove, divulga e comercializa tais produtos. São precisamente os mesmos, que sugerem que as crianças não devem andar com mochilas às costas, mas que pelo contrário querem que os jogadores andem com peso acrescido em todo o corpo, fruto da hipertrofia causada pela musculação que apregoam. Não será tão ou mais nefasto que as mochilas das crianças?! Até dói de pensar, sobretudo se tivermos em consideração o quanto são exponenciados tais pesos em alguns dos movimentos e gestos implicados no futebol!!
25. Luis Esteves: Como vê a utilização de exercícios de força como o “agachamento” com barras entre os exercícios de 3 x 3 por exemplo, nos dias de quarta-feira, em um “morfociclo normal” de jogo domingo à domingo?
Jorge Maciel: Desde já importa salientar que isso não é de um “morfociclo normal”, porque quem o faz pertence a outra lógica necessariamente, porque se o faz, e o faz deliberadamente na continuidade sem motivo para o fazer, mas porque entende que aquilo é o essencial, não percebe o essencial da Periodização Táctica, logo não a pode operacionalizar. Por isso vejo-o do mesmo modo que vejo se fosse feito noutro dia, ou seja, é uma estupidez, não faz sentido. É um tipo de movimento que não acontece em jogo, além do padrão motor implicado não ter nada a ver, até porque não implica, timings, qualquer forma de comando e controlo do movimento tendo em conta um valor alvo qualitativo, nem tem uma determinada exigência de interacção com algo em concreto e relativo ao jogo e a um jogar.
Se, me dizem que o fazem para ir de encontro ao padrão de contracção dominante a respeitar numa determinada sessão, ainda mais me convenso que não sabe o que é a Periodização Táctica. Além disso se tenho necessidade de fazer agachamentos é porque como treinador não sou capaz de lidar com a Periodização Táctica, porque não tenho criatividade suficiente para em situações de jogo elevar a propensão para a existencia de contracções excêntricas, por exemplo. Se por outro lado o meu exercício até o permite, mas eu mesmo assim faço agachamentos e coisas do género, estou a interfir numa coisa que é fundamental que é a necessidade de recuperar e não fatigar continuamente os músculos, no caso dominantemente os dos membros inferiores. É também uma insensatez. O que é que vou ter se intercalo isso com exercícios jogados?! Perda de qualidade de desempenho, por fadiga e consequente descoordenação motriz no concretizar e na identificação do que o jogo exige. Como consequência disso aumento o desconforto dos jogadores na vivenciação de um jogar, por errarem e por quererem e não poderem. Se se instala esse grau de frustração nem há aquisição nas condições ideais, porque não o fazem como desejado e também a predespisoção para adquirir é claramente contraproducente. Eu não faço bem, o que faço contrariado ou o que me leva à frustração por incapacidade, as neurociências justificam muito bem isso. O desprazer sabe-se está associado ao mau agir, e o prazer pelo contrário, está associado ao fazer bem-sucedido.
Sei que a questão resulta do facto de haver pessoas que se dizendo identificadas com a Periodização Táctica, o fazem regularmente, e lá está é mais um erro decorrente da não compreensão do modo como deve ser operacionalizado o Morfociclo. Mas de facto a mim choca-me, que pessoas que se dizem identificadas com a Periodização Táctica falem em musculação, em enquadrar na semana sessões de musculação, sessões de potência… e essa é uma confusão das pessoas não perceberem o Morfociclo Padrão e fundamentalmente o que se quer dizer com contracção muscular com tensão ou duração ou velocidade acrescida. Por não saber isso, baralham tudo e confundem a dominância ao nivel de padrão de contracção muscular com algo que não tem nada a ver e claramente associado a uma dita capacidade condicional. É normal ver-se que na quarta feira há uma conotação com o treino da força, na quinta com a resistência e na sexta feira com a velocidade. Não é nada disso. Isso faz tudo parte da mesma lógica, costumo dizer que só mudam as moscas, porque o propósito com mais ou menos adornos é sempre o mesmo, desenvolver a dita condição física dos jogadores, no caso atletas. A Periodização Táctica não tem nada a ver com isso, porque o que se pretende é melhorar o desempenho colectivo, através da indução de melhorias no todo e nas partes, tendo como referencial o todo. Não tem como propósito fundamental melhorar a dita condição física dos jogadores, a tal ponto que não entende como necessário qualquer tipo de testes físicos ou coisas do género. No entanto, não deixa de ter preocupações metabólicas e preocupações relativas à frescura e funcionalidade do Corpo, conforme evidencia a correcta contemplação do Morfociclo Padrão.
26. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da alternância do tipo de contração em termos de tensão, duração e velocidade? Qual a importância desta variação de propensão?
Jorge Maciel: este é um aspecto fundamental para a correcta operacionalização do Morfociclo Padrão, pois trata-se de uma das sub dimensões da complexidade que corporizam esta matriz metodológica. É imperativo, para funcionar de acordo com a Periodização Táctica que se entenda o porquê e como levá-la a efeito. Não vou abordar o como porque penso ter sido esclarecido numa questão anterior. Relativamente ao porquê, importa ter consciência que esta lógica de alternância ao nível do padrão de contracção muscular visa a não massificação das estruturas implicadas na vivenciação do jogar, tanto em competição como em treino, e por conseguinte evitar índices de fadiga acentuados, procurando salvaguardar a devida frescura para os momentos de competição sem hipotecar a possibilidade de evolução do jogar. Esta lógica sequencial a vivenciar ao longo da semana, procura também que concomitantemente à vivenciação de um jogar, uma organização colectiva, se induza a nível individual uma adaptabilidade que permita dar resposta às necessidades inculcadas por esse mesmo jogar. Este é um aspecto muito relevante, a possibilidade de incidir e ter repercussões a nível individual, isto é fazer emergir uma adaptabilidade a nível individual que possibilite a manifestação qualitativa de uma intencionalidade colectiva, mas fazendo-o tendo em consideração que essa adaptabilidade individual é sobredeterminada por propósitos colectivos, e vivenciada não necessariamente e não com dominância de contextos individualizados. Tendo em conta esta preocupação, pode dizer-se que a Periodização Táctica não se preocupando com a individualização do treino é, a que mais a respeita, pois é a mais individualizante das metodologias fazendo-o tendo em consideração uma verdadeira Especificidade. Esta lógica de alternância procura também evitar algo que se verifica com frequência, que é uma alternância vertical, e que consiste numa mesma unidade de treino, ter dominâncias distintas resultando daí uma mistura de várias coisas, um padrão caracterizado por não ter padrão. Em alternativa propõe uma lógica de alternância muito inteligente e sensata, digamos assim. Uma lógica capaz de assegurar a aquisição de uma realidade colectiva, salvaguardando que as implicações que o levar efeito desses propósitos requer a nivél individual, não representam desgaste perpetuado e possibilitam maior frescura tanto em competição como em treino. Propõe-se a criar condições para dquirir sem massacrar e perpetuar fadiga. Referi em cima que se trata de uma lógica inteligente e sensata, e acho mesmo que talvez sejam as palavras mais indicadas, pois resolvem um dos grandes problemas com se depara um treinador, que é, a necessidade de salvaguardar a necessidade de recuperar sem que deixe de haver aquisição, e fazendo-o assegurando que a nível individual incido sobre e do modo que pretendo, sem que o jogador perca funcionalidade e além disso acelere a sua recuperação. Já salientei a importância daquilo que chamo de regra dos 4 dias, e esta é a única forma que conheço, que admite que que face à necessidade dos 4 dias de recuperação, eu posso treinar, e fazê-lo de forma aquisitiva, fazendo algo que tem que ver com o nosso jogar, sem colocar qualquer estorvo á necessidade de estar fresco e ainda por cima, se devidamente operacionalizado acelerar a recuperação. Quando começamos a relacionar esta necessidade de alternância, com a necessidade de assegurar um determinado padrão metabólico, e a necessidade dos Princípios Metodológicos percebemos o quão bem engendrada está a Periodização Táctica, e o quanto é fascinante a complexidade que ela comporta. Por isso é também de certa forma um desafio, conforme referia Morin a complexidade é um desafio.
27. Luis Esteves: Notadamente o ganho de massa muscular é uma preocupação no futebol, aqui no Brasil por exemplo temos sempre surgindo jogadores esguios, magros e de baixa densidade muscular, porém com grande qualidade técnica, velocidade e outras características, a exemplo ultimamente de Neymar e Paulo Henrique Ganso, e em outros tempos Robinho, Nilmar, Pato, dentre outros. O que o professor acha da teoria de modificar a estrutura deste tipo de jogador, dando-lhe mais massa muscular para suportar futuros choques ou algo do tipo?
Jorge Maciel: Não será um contra-senso, abdicar daquilo que nos torna diferentes, e no caso melhores, para investir naquilo que não temos como património ecogenético e nos leva a sermos iguais aos outros?! Se o futebol do Brasil ao longo da história, assim como o de Portugal, foi tendo contornos únicos em parte devido à corporalidade padrão do país e até foi bem-sucedido, fará sentido nós querermo-nos assemelhar aos outros naquilo que eles são melhores e em que partem em vantagem?!
Acho que é muito pertinente essa referência a alguns jogadores, a eles podemos juntar os maiores craques de todos os tempos. Em 100 dos maiores talentos mundiais, 1 deve perfazer o morfotipo apreguado por quem sugere a inevitabilidade de se fazer musculação no futebol. Quem o faz não percebe as implicações que isso tem a nível biomecânico, e muito menos pondera a história do Corpo. Parte do pressuposto, errado, que o músculo é exclusivamente um órgão efector de movimento, mas não, o músculo (e tudo o que lhe dá vida) tem inteligência, sensibilidade e como tal ao sofrer alterações no sentido de haver mais músculo, haverá ali uma parte nova que é estranha que como tal necessita de ser educada. Há perda de proprioceptividade sobretudo no que se refere à manifestação de uma actividade específica (o futebol) sobretudo porque essas mudanças se fizeram tendo por base uma estimulação que em nada se assemelha ao que depois será exigido. Por tudo isto, pelo desfasamento na forma de adquirir, pelo desfasamento entre o corpo e o cérebro (corpo não tomou consciência das alterações) a propensão para lesões e descoordenação é muito maior. É comum jogadores que em poucos meses verificaram incrementos significativos, manifestarem perda de fluidez de movimentos, maior descoordenação com a bola, e nalguns casos um acentuar significativo do número de lesões.
Alterar o morfotipo de um jogador de futebol, para que pretensamente ele seja melhor sucedido em determinadas situações em jogo, é acreditar que podemos em meses mudar, sem estorvo um Corpo que tem um história de anos e que se desenvolveu em função dessa história e suportado nesse Corpo. Em Portugal diz-se que «não se engorda um peru para o Natal em quinze dias». E acho muito válido para estes casos. Eu tenho que perceber que fruto do desenvolvimento e crescimento de cada jogador, ficou marcado no Corpo de cada um, um conjunto de vivências e de mecanismos ou estratégias que em jogo, lhes foram permitindo ser bem-sucedidos perante aquilo que á partida eram adversidades decorrentes das aparentes desvantagens morfológicas que apresentavam. E isso até me parece não ser muito difícil de detectar, basta estar atento. Por exemplo no último mundial de futebol, na África do Sul, a generalidade das equipas africanas tinha jogadores que mais pareciam ser porteiros de discoteca, mas jogar futebol nada, e nos duelos então eram os mais facilmente ultrapassados. Outro exemplo, na final da Liga dos Campeões Europeus entre o Barcelona e o Manchester United, vimos jogadores como o Messi e o Villa a utilizarem o Corpo em disputas e a conseguirem derrubar jogadores claramente muito mais atléticos que eles!
A hipertrofia que se sugere aos jogadores pode ter implicações muito profundas sobre os jogadores, relembro a história das mochilas das crianças, e reforço a ideia de que deve ser muito desconfortável para um organismo, habituado durante anos a um determinado, num curto espaço de tempo ver-se com ganhos de massa muscular que representam aumentos de peso que podem chegar às dezenas de quilos. Imagine-se só, o impacto e desregulação que tal pode implicar a nível das articulações, e ao nível dos fusos neuromusculares e dos órgãos tendinosos de golgi. Não somente o impacto necessário a suportar é muito maior, como a qualidade de informação dos estados corporais vivenciados requer um reacerto, que inicialmente não existe. Face a isto percebe-se que o risco de lesão pode estar substancialmente aumentado. Mas além disso, geralmente associada à hipertrofia, aumento do volume das células, tem a hiperplasia, isto é, aumento do número de células por tecido. Um incremento que representa necessariamente uma maior necessidade energética, e também um maior dispêndio em exercitação e maior necessidade de recuperação, porque tenho mais células para alimentar e posteriormente para regenerar. Se juntarmos isso ao que referi antes, nota-se que a propensão para a ocorrência de lesões está claramente acentuada. Além disso, contraria aquela que é uma das principais preocupações da Periodização Táctica, o não acentuar dos índices de fadiga.
Para terminar, e referindo-me em concreto ao Brasil, penso que deveria haver uma reflexão profunda no sentido de tentar perceber o que fez e faz do Brasil um país com tão bons jogadores. Noto que as academias que agora se constroem no Brasil são Top, e ainda mais as salas de musculação que têm, mas quanto dos jogadores TOPTOP do passado brasileiro tiveram essas condições? E será que o Brasil no futuro continuará a ser o país no mundo onde reconhecidamente emergiam os melhores talentos? E será que ainda o é no presente? Eu penso que o segredo do futebol passa por recuperar o que se fazia na rua, nas praias em qualquer lado, mas jogando sempre futebol e experimentando um conjunto de vivências paralelas que desenvolviam muito do potencial de cada talento, acho que esse foi o segredo dos grandes craques da história.
28. Luis Esteves: Qual a importância do alongamento? Como define a utilização dos mesmos nas sessões de treino? Diferencia a utilização do alongamento nos diferentes dias da semana?
Jorge Maciel: O alongamento é uma parte importante do processo de treino, porque eu tenho que reconhecer que a vivenciação continuada de um jogar, em treino e em competição, tem implicações e repercussões anatómicas muito significativas, e que tendem a induzir em cada jogador uma determinada adaptabilidade, que se pode paradoxalmente constituir como um estorvo à manifestação da Adaptabilidade intencionalizada que eu quero manifestar como regularidade. Por vezes as pessoas quando falam de Periodização Táctica dizem muito erradamente que “físico não existe na Periodização Táctica” Isso é uma aberração, claro que existe, não do modo convencional mas existe e eu tenho de saber, não somente que existe, como que ao existir tem implicações no modo como eu faço a gestão do processo. Eu tenho de ter consciência que o facto de os meus jogadores estarem constantemente sujeitos a um determinado padrão de actividade tem sobre eles determinadas implicações a nível anatómico e funcional. Esse tipo de repercussões, por exemplo decorrentes do encurtamento das massas musculares mais solicitadas e implicadas na vivenciação do meu jogar pode ser contraproducente e nalguns casos até mesmo constituir-se como patológico. E aí o alongamento assume um papel determinante no sentido de atenuar, minimizar e se possível evitar ou contrariar essa adaptabilidade, encurtamento, que sendo resultante da vivenciação continuada do jogar se constitui como um estorvo à sua manifestação qualitativa.
O alongamento é uma ferramenta muito importante, diria mesmo fundamental para evitar o encurtamento das massas musculares, para possibilitar a uma maior agilização do Corpo em movimento e em interacção com o que o rodeia. Do mesmo modo que não há princípios sem pessoas, também não existe possibilidade de os concretizar e dar vida se o Corpo e a gestualidade que os manifestam ou tentam não o permitem, porque não estou ágil, nem flexível e não consigo concretizar ou concretizo sem eficácia determinadas acções ditas técnicas porque a minha amplitude articular não o permite.
Quanto ao modo de levar a efeito os alongamentos, eu identifico os grupos musculares mais implicados no nosso jogar e não vario de sessão para sessão os músculos a alongar. Sei quais os grupos musculares dominantemente e continuadamente implicados e alongo-os sempre, até por uma questão de habituação da parte dos jogadores. Dos poucos aspectos que pondero e isso vai da sensibilidade de cada um, é evitar que se sentem, levantem e voltem a sentar. Para além disso não tenho muitas mais preocupações, até porque as necessárias, me são salvaguardadas pela própria configuração fraccionada das sessões de treino. Isto é, sei que em determinadas unidades de treino, pela sua configuração padrão, tenho mais necessidade de alongar. No entanto, e por isso é que a Periodização Táctica está tão bem engendrada, as sessões em que mais necessito de alongar são também aquelas que mais me permitem fazê-lo, pois são as mais fraccionadas.
29. Luis Esteves: Como o professor vê a Fadiga física e Mental, e quais as suas particularidades?
Jorge Maciel: Eu vejo a fadiga como um todo. Apesar de convencionalmente se falar em fadiga central e periférica, eu entendo que ainda que uma possa ter mais predominância do que outra em determinados momentos, uma vez que elas estão mutuamente implicadas não as considero isoladamente, até porque quando recupero também não o faço. Estou fatigado, quando o meu Corpo está fatigado e para mim o Corpo é tudo. Esclarecida esta minha perspectiva, entendo que a fadiga é dos aspectos mais relevantes a ter em conta no processo de treino. E sem dúvida que a Periodização Táctica tem como grande preocupação a fadiga, ou mais precisamente a possibilidade de através de um lógica de desempenho recuperação possibilitar que a fadiga não se instale nem se perpetue numa equipa, sem que esta perca possibilidade de adquirir e evoluir, mas salvaguardando a sua frescura nos momentos de competição. Gestão complexa que só é possível através da adequada operacionalização do Morfociclo. Infelizmente o que se observa por norma, é que a lógica de não alternância dos processos de treino não permite que as equipas se encontrem frescas no momento de competição. As equipas preocupam-se em treinar bastante durante a semana e descansar ao fim de semana, facto que só não é mais evidente porque por norma jogam em pé de igualdade. Aliás penso que esse fenómeno é muito evidente no Brasil por alturas dos estaduais, quando a densidade competitiva é grande e nem todas as equipas têm as mesmas condições temporais para treinar, ou fruto de serem estruturas com dimensão diferente não têm a mesma possibilidade de treinar. Então o que é que se verifica, verifica-se que equipas com orçamentos muito mais reduzidos, e com menos meios (mas talvez os necessarios) para treinar e disponibilidade de tempo, acabem por antes dos jogos treinarem menos que equipas com maiores orçamentos e com maiores aspirações, no entanto, apesar de tudo aparentar serem desvantagens quando em confronto acontecem surpresas, especulo eu que devido á maior frescura das equipas ditas mais modestas. Porquê?! Porque treinaram menos e não se cansaram durante a semana.
Mas voltando à resposta e salientando a importância da fadiga no processo de treino, importa referir que a fadiga é uma necessidade para a potenciação e maximização dos desempenhos. No entanto, tem de ser circunstancial. A necessidade de induzir fadiga é reconhecida como fundamental pela generalidade das metodologias de treino e aqui a Periodização Táctica não é excepção, contudo, também aqui ela se revela transgressora, porque reconhecendo-a como fundamental equaciona-a de forma diferente. E é diferente porque tem como preocupação a não perpetuação da fadiga e a não exercitação em condições de fadiga acumulada e acentuada. Além disso, aquilo que a motiva, que motiva a fadiga, são estímulos relativos aos desempenhos relativos a um jogar, e não as ditas “cargas” físicas.
Na Periodização Táctica entende-se que a adaptabilidade decorre da vivenciação continuada, ainda que em diferentes escalas, de um jogar. Uma vivenciação que devendo ser qualitativa deverá necessariamente induzir fadiga, caso contrário seria um estímulo irrelevante do ponto de vista aquisitivo. Para quem pensa o treino deste modo, deve conceber o Corpo como uma estrutura dissipativa, ou seja, como uma realidade complexa que carece de ser constantemente e continuadamente levado aos limites do possível para que se transcenda e possa atingir estados de complexidade sucessivamente mais complexos e maximizados. Portanto, para que se observe tal transcendência o organismo, no caso em interacção induzida pelo treino, tem de ser levado aos limites, para que nele se instale uma desestruturação, que possibilite posteriormente a sua regeneração ou reestruturação passível de alcançar níveis de adaptabilidade superiores. Sendo isto relevante, ou reconhecendo-se que isso de facto acontece, importa equacionar de que modo o organismo ou o Corpo após ser submetido a um estímulo que o levou aos limites, a todos os níveis, pode reorganizar-se sem deixar de respeitar o que era, mas fazendo-o de forma exponenciada. Considero este processo como um processo de resiliência orgânica ou Corpórea, no qual o organismo sofre um estímulo que não é nem deve ser inócuo, desestruturando-o, mas que depois de superar esse conflito se revela reorganizado e potenciado sem perda de identidade. No entanto, entendemos que para o Corpo ser capaz de ser resiliente, carece de tempo para se repor do abalo a que foi submetido, somente desse modo a reorganização se torna possível. Ora isto implica que após eu submeter o organismo a um estímulo de treino, o qual lhe induziu fadiga considerável, eu só devo fazê-lo novamente depois de proporcionar o tempo necessário para que a fadiga não esteja presente no organismo, ou esteja de forma muito residual.
Quanto ao modo como a fadiga se pode manifestar ele pode ser muito diverso, e é muito importante que eu enquanto treinador saiba identificar e detectar quando os jogadores estão fatigados, para evitar entrar num processo corrosivo de degradação permanente de performance quando o que pretendo é o contrário. A fadiga pode por exemplo manifestar-se na concretização da gestualidade, mas também no critério que a suporta e nos timings de manifestação, quando a fadiga se instala observa-se como que um prolongar que leva a que a coisa não saia tão fluida. Sabe-se, embora ainda muito pouca gente, que o ATP tem dupla função o que é mais uma prova que ambos os tipos de fadiga se implicam mutuamente. E este é um aspecto muito importante para o treino e para a qualidade do processo de treino. O ATP além de se constituir como elemento fundamental no mecanismo de contracção, conforme se sabe generalizadamente, é também um elemento determinante no controlo e comando do movimento. Trata-se portanto de uma molécula determinante para a proprioceptividade e para a sua manifestação qualitativa, pois auxilia nas tarefas de informação sobre os diferentes estados que o corpo experimenta a cada momento. Daqui se depreende que a sua depleção ou não ressintese, devido à sua utilização anterior e nalguns casos sobreutilização, terá implicações muito significativas na qualidade da gestualidade, tanto ao nivel da sua concretização como na sua componente informacional, a possibilidade de antecipar será certamente muito menor por exemplo, porque o Corpo está letárgico adormecido, ou melhor dizendo desinformado. Será um Corpo cego e sem inteligência. Este aspecto reforça ainda o que referi antes, ou seja, a necessidade de dar tempo para que o organismo retome a sua funcionalidade normal, no caso para permitir a ressintese de ATP, antes de ser submetido a novo estimulo. O que contraria muito do que é postulado nas lógicas de treino convencionais, nas quais o propósito é induzir fadiga, mas de forma continuada, para que através da sua perpetuação, acreditam eles cheio de boas intenções, o organismo consiga responder melhor em condições de fadiga. Ora o que se persegue na Periodização Táctica não é nada disso, pois reconhece-se que tais intentos contrariam a possibilidade de fazer emergir a adaptabilidade desejada, hipotecando por exemplo, a possibilidade do padrão metabólico dominante ter como suporte fundamental e predominante o metabolismo anaeróbico aláctico, aquele que torna possível ir á fronteira do caos e por conseguinte elevar o Corpo para patamares de desempenho continuadamente superiores.
30. Luis Esteves: Quais métodos utiliza no processo de recuperação fora os exercícios?
Jorge Maciel: Na verdade não são métodos são instrumentos utilizados por quem operacionaliza o processo de acordo como uma Metodologia, a Periodização Táctica. O Professor Vítor Frade designa-os de “afinar porcas e parafusos” numa analogia aos carros de fórmula 1. É que tal como os carros de fórmula 1, também os jogadores pela vivenciação do processo de treino e competição, fazendo-o como desejado nos limites do possível, se vêem obrigados a constantes afinações, conforme salientei numa resposta anterior. Não é um preciosismo dizer que não são métodos, a Periodização Táctica é una, não tem nem precisa de complementos, e quem entender ou disser que isso são complementos não percebe a essência do que se está aqui a tratar, porque não compreende nem reconhece os diferentes níveis que o jogar comporta. Por vezes fala-se em fractais mas esquecemo-nos que um fractal deve ser um fractal de tudo, se não, não o é, e a necessidade de recuperar e salvaguardar a funcionalidade das estruturas que concretizam a gestualidade implicada no jogar tem de ser entendida como uma parte do nosso jogar e com a qual devemos ter especial preocupação. A Periodização Táctica requer que o processo de treino tenha qualidade, logo intensidade, e seja capaz de envolver os jogadores no sentido de os levar aos limites do possível, relativizando-se isto em função da configuração de cada sessão. É da qualidade do processo que emerge a manifestação exponenciada da Especificidade que desejo, e para isso é fundamental que os jogadores experimentem constantes estados de adaptabilidade melhorada, o que implica que eu os desafie e os estimule no sentido de andarem constantemente nos limites do possível, que deste modo desejo que seja um constante estado de transição. Para que haja uma evolução a nível individual e colectivo torna-se fundamental que os estímulos induzam nos jogadores, e consequentemente na equipa, a necessidade de reestruturação permanente, sem que se verifique a perda de integridade. Estamos portanto perante um dos grandes desafios do treino, o doseamento e o ajustamento. Como estimular aquisitivamente sem induzir um estado de desregulação tal que não hipoteque a evolução e assimilação contínua da aquisição. Isto implica perceber o processo e a adaptabilidade induzida em cada jogador como uma espécie de estrutura dissipativa, que através de um processo de resiliência corpórea experimenta, uma desestruturação momentânea, para posteriormente ascender ou fazer emergir um nível de complexidade superior. Não obstante o que referi, isto só se torna possível se a recuperação o permitir. A necessidade de recuperar é fundamental, e deve ser equacionada a vários níveis, entre jogos, entre treinos e no próprio treino, para que o processo tenha qualidade. Pelo facto da recuperação e das “ferramentas” de que me socorro para a levar a efeito serem uma dimensão do nosso processo, não as posso conceber como uma metodologia ou metodologias auxiliares e à parte. É muito simples, de que me adianta ter uma determinada concepção de jogo, treiná-la, mas não atender ao desgaste que ela provoca?! É uma especificidade canhestra, uma espécie de holismo balofo. Eu tenho de ter consciência que o Jogo, e de modo particular o meu jogar têm implicações biológicas, isto é, a todos os níveis, cognitivos, metabólicos, musculares… e na relação altamente complexa entre tudo isto, e se não atender a isso no meu processo de treino nada feito. A Especificidade só emerge do processo se eu tiver Intensidade na vivenciação do meu processo e para isso importa respeitá-lo em todas as suas dimensões. Se não o fizer estarei a hipotecar a possibilidade de vivenciar e expressar com regularidade e com o grau de desempenho desejado (em treino e competição) aquilo que pretendo como identificador do meu jogar. O não respeito por isso hipoteca a Especificidade, daí que não sejam metodos per si, mas ferramentas de uma metodologia que é única e que se preocupa com tudo o que está relacionado com o fazer emergir uma forma de jogar.
Dos aspectos mais relevantes na configuração de cada sessão de treino que compõem o Morfociclo Padrão são a intermitência da sessão e os tempos de exercitação e não menos importante de repouso. E por vezes parece-me que são entendidos como aspectos irrelevantes. Muito pelo contrário são determinantes, pois são o que me garante, em conformidade com o regime dominante no treino, que os exercícios tenham a intensidade pretendida, que a aquisição tenha momentos de aquisição verdadeiramente aquisitivos, que se verifiquem períodos para a estabilização de tais aquisições, que o padrão metabólico dominante que quero implicado na vivenciação seja assegurado e que me permite que não se instale na equipa um estado de fadiga permanente e perpetuado. O modo como rentabilizo os momentos de pausa é determinante em tão complexa gestão. E eu rentabilizo-os com as tais “ferramentas” que me ajudam a salvaguardar a funcionalidade de cada jogador. Recupero no próprio treino através de momentos de extensibilidade, alongamentos portanto, através da realização de abdominais. E posso fazê-lo estando a falar sobre os desempenhos verificados nos exercícios anteriores, falando sobre a relevância de determinando aspecto, sobre a articulação disto com aquilo. São momentos do treino em que eu posso aproveitar para recuperar através da realização de alongamentos, hidratação, abdominais, e simultaneamente de forma mais formal identificar e sintonizar os jogadores com o que se fez, se tem feito e a relação disso com o que se perspectiva vir a fazer.
Anteriormente já falei sobre a importância dos alongamentos, mas penso ser igualmente importante salientar a importância da realização de exercícios abdominais, e fundamentalmente elucidar o porquê de tal necessidade, o que penso a generalidade desconhece. Eu não faço abdominais para os jogadores ficarem bonitos na praia. A maior parte das vezes quando se fala na realização de abdominais as pessoas referem a necessidade de os tonificar. Eu acho que está muito para além disso. A zona da bacia é uma zona que devido à aquisição do bipedismo sofreu várias alterações, que no entanto nos colocam alguns entraves quando, como no caso do futebol, se observa uma sobreestimulação das estruturas que aí se inserem. Fundamentalmente tenho de perceber que naquela zona do nosso corpo se inserem várias porções musculares, as quais se “digladiam” por espaço, o que não abunda dada a elevada densidade de fibras musculares que ali existem. Verifica-se portanto uma incompatibilidade anatómica decorrente do facto de ter muito para meter em pouco espaço. É como se tivéssemos uma mala para viajar e o que nela queremos colocar se não for devidamente acomodado e devidamente dobrado não poderá ir dentro, ou se for corremos o risco de rebentar com os fechos. E naquela zona temos este problema, que quando não devidamente equacionado e operacionalizado pode resultar em lesões, que na realidade são a expressão do não reconhecimento das exigências funcionais que a vivenciação continuada de um jogar implica. Ou seja, resulta do não reconhecimento dos vários níveis de especificidade que permitem o emergir da nossa Especificidade. O caso mais evidente deste quadro de “desrespeito”, e também de “desrespeito” pelo binómio EsforçoRecuperação é a pubalgia. A pubalgia é uma consequência da amplificação do desequilíbrio muscular que se observa ao nível da parede abdominal. Sendo consequência da alteração de equilíbrio que deve verificar-se entre os músculos abdominais e as massas musculares dos membros inferiores que se inserem na zona pélvica. Devemos ter consciência que no futebol, acções como o remate, salto, deslocamento lateral, travagens, mudanças de direcção… assumem uma grande relevância na alteração de tal equilíbrio, contribuindo consequentemente para a sua disfuncionalidade. Por norma observa-se que nos jogadores de futebol há um sobredesenvolvimento dos músculos adutores e um subdesenvolvimento dos músculos abdominais. Podemos evitar que tal desequilíbrio se instale, e se salvaguarde a funcionalidade harmónica desta região anatómica tão implicada e tão importante no futebol se controlarmos bem o doseamento necessário nas sessões de treino e se nos momentos de pausa aproveitarmos para estimular a região abdominal e respectivo alongamento assim como para alongar as massas musculares dominantemente implicadas durante a exercitação, entre as quais os músculos adutores e o psoas ilíaco, “para que todos caibam na mala”, sem se digladiarem. Importa por isso referir que mais do que tonificar a região abdominal, o relevante é a sua agilização. Por esse motivo o alongamento desta região é também muito importante para a fluidez da gestualidade e para a prevenção de lesões. Sendo o meu objectivo a agilização desta zona, não faz sentido que eu a estimule em isometria, por exemplo. Mas também não os devo estimular de forma dinâmica de modo indiferenciado. Muitas vezes observo que grande parte dos exercícios abdominais que se realizam são desajustados, ou quando não o são não são devidamente realizados, nem há intervenção no sentido de os corrigir. Não raras vezes aquando da realização de exercícios abdominais existe uma solicitação parasita de músculos já sobresolicitados pela vivenciação do jogar, nomeadamente o psoas ilíaco, o recto anterior, tensor da fáscia lata e também os adutores. Como diria o professor Vítor Frade fazê-lo é como dar sal a alguém que é hipertenso. A sobresolicitação destes músculos hipersolicitados na prática de futebol, contribuirá de forma muito negativa para o desequilíbrio, cada vez maior entre os músculos da parede abdominal, enfraquecidos, e os da perna, geralmente muito desenvolvidos. É por isso que devemos ter muito critério na escolha dos exercícios abdominais, fugir do desejo de inventar coisas diferentes e assegurar que temos um controlo qualitativo do modo como os jogadores os realizam. É por tudo isto que treinar é altamente complexo, mas não menos desafiante.
31. Luis Esteves: Como vê a crioterapia no dia a dia de uma equipe?
Jorge Maciel: O recurso à crioterapia vejo-o como vejo o recurso a outros meios que tentam acelerar a recuperação dos jogadores, seja através de suplementação vitamínica, seja através de massagem ou de qualquer outra forma. Ou seja, entendo que se o que se pretende com o treino é uma determinada Adaptabilidade, a um referencial colectivo e ao processo que lhe dá vida, mas que se deve instalar em cada um dos organismos intervenientes no processo, o recurso a tais meios poderá constituir-se como um estorvo e até de certa forma como uma dependência por parte do organismo em relação àquele que é um dos meus objectivos com o treino. O Professor Vítor Frade tem uma expressão muito boa relativamente ao que tento referir, quando diz que recorrer a esses meios consiste em “dar muletas ao corpo”. E de facto é, eu comparo-o às mulheres girafa de algumas tribos africanas e asiáticas, ao longo de um processo de desenvolvimento e crescimento vão-lhes sendo colocadas argolas em torno do pescoço, o que além de o tornar maior também lhe serve de suporte, por isso a musculatura daquela zona acaba por atrofiar e perder sensibilidade, a tal ponto que se as argolas forem retiradas a cabeça tomba sobre o tronco e elas morrem. Pode parecer uma visão excessivamente Lamarckiana, mas não me choca e eu acredito que o mesmo suceda com os jogadores quando lhes damos tais muletas. “A função faz o órgão”, por isso se treina, para criar uma adaptabilidade que se constitui em várias alterações a nível orgânico, e não para que fique tudo na mesma. Se o que pretendo é induzir uma adaptabilidade a um determinado padrão de esforçar recuperar, Morfociclo Padrão, e se reconheço que o processo e as entidades Biológicas que lhe dão vida são altamente complexas, e por isso mesmo extremamente sensíveis às condições iniciais qualquer pormenor, e sobretudo no inicio do processo, pode ter repercussões inesperadas sobre o que se deseja.
Agora entendo que há aspectos que devemos ponderar, mas por princípio no início da época parece-me desaconselhado, lá está, porque quero que seja o organismo por si a ter que revelar resiliência orgânica e crie uma adaptabilidade ao processo sem intervenção de meios exógenos, porque isso iria induzir a nível metabólico uma certa dependência e uma adaptabilidade condicionada e regulada também externamente.
Entre os aspectos que nos podem fazer ponderar sobre o uso ou não de tais meios, a densidade competitiva pode ser talvez o mais relevante. Quando a densidade competitiva se adensa, a necessidade de acelerar a recuperação é o aspecto mais fundamental, não para os cansar em treino como sucede na generalidade dos casos, mas antes para que a equipa possa estar o mais fresca possível nos momentos de competição. Quando temos na continuidade muitos jogos em curto espaço de tempo pode fazer sentido recorrer a tais meios. Mas repare-se, se eu o fizer quando de facto necessito o efeito será mais proveitoso, se pelo contrário ao longo da época e desde inicio os jogadores foram se socorrendo de tais meios, que acrescento eles poderão constituir em tais momentos que mais preciso?! Se não habituei o organismo a esses meios e pelo motivo apontado vejo que naquele momento se torna pertinente, aí sim vou tirar grande rentabilidade, vou conseguir potenciar o efeito que desejo com o recurso àquele meio, porque até então, e como o organismo não tem necessidade do que desconhece e daquilo que não se instala como necessidade, passa a contemplar aquele meio como um acrescento diferenciador.
Outro aspecto importante a ter em consideração é os hábitos e as crenças dos jogadores. Há jogadores que têm uma história, e cada qual tem a sua por isso é tão complexo e interessante treinar, que passa pela utilização continuada de meios como a crioterapia, a massagem, banhos ou suplementação vitamínica e isso tem um peso enorme sobre eles. Aí é fundamental ter sensibilidade para perceber as motivações dos jogadores quando recorrem a tais meios, e ter muita sensibilidade para tentar lhes fazer perceber o que referi em cima, ainda que com outra linguagem. Os jogadores são muito inteligentes e têm muita sensibilidade para estes aspectos, desde que saibamos mostrar que o que lhes estamos a dizer faz sentido. Por exemplo eu posso dizer no inicio da época que será melhor ele não recorrer ao que quer que seja, justifico e explico os motivos, e dou-lhe até ao inicio da competição para ele experimentar, porque aí o lado da superstição e da crença não é tão relevante, pelo menos em termos de resultado, depois se ele não se sentir confortável a partir daí ok, acordamos ele continuar a fazer o que fazia até então em termos de ajudas exógenas. E este período o que é que me permite?! Desde logo, permitiu que num período importante e considerável de tempo, em que eu desejo uma adaptabilidade a um processo e a um padrão de desempenho recuperação, que ele vivenciasse tal processo sem estorvos externos e como que fosse o organismo a adaptar-se. E além disso pode até resultar e abolir por completo a crença que tinha. Aliás a propensão para isso será, parece-me, muito maior com a Periodização Táctica do que com outras metodologias, porque o sentimento de desconforto e de extenuação sentido nas ditas pré épocas não se verifica de forma tão marcada como nas outras metodologias. Logo, o jogador mesmo crente que precisa, o processo requisita menos tal necessidade porque a reacção do organismo é menos violenta. Penso mesmo que o recurso a tais meios, sobretudo em momentos precoces das épocas resulta disso mesmo, da enfâse que é dada à dita dimensão física na generalidade dos processos de treino, e nesses casos talvez seja de facto uma necessidade e até inevitabilidade, pois há quem faça coisas completamente desumanas, as quais induzem no organismo um desconforto terrível e uma enorme desregulação.
32. Luis Esteves: Feedback e Feedfoward são dois pontos importantes na facilitação do entendimento das informações, gostaria de saber do professor que importância atribui a cada um deles, e em que momento utiliza-os?
Jorge Maciel: De facto, tanto o feedback como o feedfoward são dois aspectos, ou estratégias de intervenção determinantes para o alcance ou concretização daquela que é uma das grandes pretensões da Periodização Táctica, e que passa pelo desenvolvimento concomitante do saber fazer com o saber sobre esse saber fazer. Também aqui mais importante do que conhecer e pronunciar os conceitos importa reconhecer o seu potencial operativo e ainda mais, importa que os saibamos utilizar de forma adequada e contextualizada. São por isso ambos de extrema importância se devidamente operacionalizados, não consigo estabelecer um grau de relevância de um em relação ao outro porque de facto ambos são determinantes para a identificação, esclarecimento, sintonização e concretização da intencionalidade colectiva desejada e vivenciada. Trata-se portanto de uma questão, não de grau de relevância mas antes de uma questão de ajustamento, de critério relativo aos instantes em que nos socorremos de cada um e ao modo como o fazemos. Não obstante deve se reconhecer que o feedback tende a ser mais favorecedor de uma aprendizagem por recepção, enquanto que o feedfoward vai mais de encontro a um processo de descoberta. Compete por isso ao treinador perceber quando recorrer a cada um deles, ou se assim o entender a geri-los inclusive de forma conjunta. Para isso tem de perceber a realidade envolvente, o que tem para transmitir, quem tem para receber tal transmissão e em que circunstâncias isso acontece. Por exemplo no caso da nossa situação na Líbia tínhamos de pesar muito bem estes aspectos, porque estando com ou sem tradutor sentíamos que a comunicação em termos de linguagem não era a ideal e nesse sentido, a consciencialização em relação ao que queríamos que fizessem ficava mais dificultada e por vezes era mesmo impossibilitada. Reconheço que idealmente, num mundo sem circunstâncias, e portanto num mundo irreal, seria preferível a dominância estar no lado do feedfoward, mas a realidade obriga-nos a ter que reconhecer que aquilo que é didaticamente ideal, na prática, num determinado contexto pode não o ser. O que quero com isto dizer é que face às circunstâncias tudo tem de ser ponderado parcimoniosamente, ainda que aparentemente e paradoxalmente não raras vezes intuitivamente, para que a intervenção seja contextualizada, pois só essa me permite chegar de facto onde quero, isto é, ao fazer emergir uma determinada Especificidade. Por exemplo, enquanto treinador temos de perceber que muitos aspectos, habituação dos jogadores, incapacidade dos jogadores para descobrir o caminho ou incapacidade do treinador para lhe dar as pistas certas para o encontrar, urgência de resultados, falta de tempo para construir um processo assente dominantemente na descoberta guiada… entre muitos outros, podem condicionar o meu desejo de os levar a tomar consciência, pela descoberta, daquilo que se deseja adquirir. Quando assim sucede mais vale reforçar as respostas que eles nos vão dando no fazer e a partir daí identifica-los como o queremos e trazê-los para a esfera do saber sobre esse saber fazer. Mas devemos ter consciência que no primado está a acção, ou se quisermos a interacção. E sobretudo aquilo que eles à partida já manifestam como sendo a representatividade de determinada acção. Com base nisso, no que eles fazem tentamos identificá-los com o que desejamos, descomplexificamos o processo por vezes dando pistas que são quase soluções e reforçando, positiva ou negativamente, o que eles vão concretizando ao longo do processo e sempre que possível torná-los envolvidos na construção do processo. Portanto, paradoxalmente a ideia, que é inicialmente do treinador, tem de ser transmitida partindo fundamentalmente de quem a vai receber e incorporar, os jogadores. E é à medida que ela vai sendo assimilada e tornando-se cada vez mais dos jogadores que o treinador deve a fazer convergir, de forma mais “forçada”, com aquilo que são as suas ideias. Isto é, inicialmente os contornos gerais da ideia devem ser transmitidos partindo daquilo que é o grupo de jogadores em questão, daquelas que são as suas crenças, habituação… e a partir daí, quando a crença e adesão ao esboço da ideia se vai tornando cada vez mais consolidado é que o treinador deve modelar a ideia nos seus contornos em função do que pensa ser relevante para a potenciação do esboço inicial. Ainda que tal potenciação deva respeitar a ideia inicial, ou intenção prévia do treinador, ela não pode ser autista, daí ter de considerar se de facto os contornos que o treinador quer dar à “coisa” fazem sentido ou são exequíveis perante aquele contexto e grupo de jogadores. Concretizando eu tenho que os identificar com o que quero, reforçar quando o fazem e á medida que o processo se desenrola torná-los conscientes da profundidade daquilo que fazem. Por exemplo, se eu tenho uma equipa que tem uma habituação de anos em que as referências defensivas de marcação são individuais eu vou ter muito trabalho e necessariamente terei de ter muita sensibilidade para lhes transmitir e fazê-los incorporar aquilo que é um desejo meu. Terei de partir deles para perceber como desmontar tal habituação, terei que os identificar com o que quero, levá-los a fazer e estar muito atento na intervenção para intervir em conformidade e reforçar o que vai acontecendo e sendo por eles manifesta, ao longo de todos este processo vou tentar que eles sintam e percebam porque o devem fazer e que implicações tal funcionalidade tem, em cada um e no colectivo. Não é fácil, e sobretudo temos de ter perfeita noção que não há receitas, apela fundamentalmente ao Sentido da Divina Proporção, daí que não faça sentido estabelecer momentos para a utilização tanto do feedback ou do feedfoward. E esse é o lado engraçado e desafiador do processo, não há receitas, tem de haver arte na gestão de tudo isto. Eu penso inclusive que muita da robotização manifesta por muitos jogares resulta da renúncia da parte dos treinadores ao lado intuitivo da gestão dos processos de treino. Parece que parte da pergunta feita, “em que momentos utiliza-os” espelha uma tendência generalizada nos treinadores, e que quanto a mim radica na não capacidade de lidarem com a complexidade e com o que esta implica, nomeadamente a necessidade de estarmos perante uma realidade que não é à partida totalmente conhecida. Quando lidamos com uma realidade como o treino e o jogo temos de ter consciência que, apesar de estarmos a lidar com uma realidade que queremos no global sobredeterminada pelos nosso intentos, na verdade não passa de uma realidade em parte, ao nível do pormenor, imprevisível. E isto cria receio nos treinadores, que na verdade desejam ser verdadeiros deuses de Laplace e ter um controlo total sobre tudo, o que é impossível. E reconhecer isto é quanto a mim um passo muito importante para melhor lidar com o desconforto que é lidar com o desconhecido. Se assim encararmos o treino esse desconforto adrenalinico torna-se muito estimulante e desafiador, é de facto o que nos dá pica.
33. Luis Esteves: Qual o conceito do professor sobre a Intensidade máxima relativa?
Jorge Maciel: Quando se fala em intensidade máxima relativa, devemos considerar que tem a ver com a necessidade de se perceber o que é um valor alvo, ou seja, trata-se de um problema de escolha e de critério face aos condicionalismos circunstanciais que o contexto me coloca. Tem portanto que ver com o ajustamento. Por exemplo eu posso ter uma velocidade de deslocamento máxima bastante grande, mas não fazer dela o melhor uso, ou seja, não a aproveitar em conformidade com o que o jogo me requisita. O Messi não é mais rápido que o Walcott, mas tem muito mais critério no uso que faz da velocidade, tem timings mais ajustados, acelerações, travagens e mudanças de direcção em conformidade com o que lhe vai sendo necessário, por isso joga regularmente em intensidades máximas relativas, porque face ao contexto ela ajusta para lhe responder com o desempenho mais eficaz e eficiente. Isto no que se refere à intensidade relativa ao nível do desempenho de um jogador, ainda que como se torna evidente em interacção cooperante ou de oposição. Mas podemos também falar noutro tipo de intensidade máxima relativa, a que se reporta ao grau de intensidade ou complexidade requerido em cada dia do Morfociclo. O que se pretende na Periodização Táctica é que a intensidade na vivenciação de um jogar seja sempre máxima, entendendo-se a intensidade associada à concentração e também à qualidade do desempenho, o tal problema do ajustamento que salientei. Contudo, como a configuração padronizada de cada dia difere, também a intensidade implicada nas várias unidades de treino difere. Há portanto que relativizar a noção de intensidade máxima. O treino de quarta-feira tem nos exercícios menos elementos em interacção que o de quinta-feira, o que faz com que a intensidade de quinta seja “mais intensa”, pela maior complexidade que comporta, que a de quarta-feira que no entanto, para aquele padrão de desempenho tem de ser máxima. O mesmo sucede com os restantes dias do Morfociclo padrão, as intensidades têm de ser relativizadas em função do padrão de exercitação e de aquisição implicados na respectiva sessão, sendo que a intensidade máxima em cada dia emerge da qualidade dos desempenhos manifestos, ou seja, do modo como os jogadores se ajustam e reajustam aos estímulos que sobredeterminam as suas acções nos contextos de exercitação.
34. Luis Esteves: A concentração é fundamental na intensidade, porém na sua visão como ocorre o processo de evolução da continuidade da concentração?
Jorge Maciel: Na Periodização Táctica a intensidade está necessariamente associada à concentração, e a sua evolução ocorre do mesmo modo, ou de forma análoga ao que sucede com a evolução do jogar. Isto é, acontece fundamentalmente fazendo. E claro, eu entendo que há um aspecto determinante para que o processo tenha intensidade, que é a capacidade que o treinador tem para liderar o processo. Só sabendo liderar, independentemente do modo, se pode exigir dos jogadores, ou melhor, se eu for de facto líder consigo catalisar os jogadores no sentido de se implicarem activamente, e necessariamente concentrados, na vivenciação do processo, ou seja, liderar é fundamental para ter qualidade e como tal intensidade nos desempenhos e somente desse modo emergirá uma Especificidade de qualidade. Depois claro está, há também outros aspectos como a necessidade de alimentar a concentração em função daqueles que são os estados que a equipa vai manifestando ao longo do processo, e aí além da liderança os próprios conteúdos de treino e o ajustamento ás circunstâncias de determinado período ou circunstâncias que a equipa está a viver são aspecto relevantes. De uma forma geral temos de ter consciência que a evolução da complexidade vai de encontro ao Princípio da Progressão Complexa, do menos para o mais complexo e sabendo que isso não é linear, e que além disso em determinadas alturas menos é mais. Um aspecto interessante é que, em termos ideais, eu não imponho concentração devo antes levá-los a estarem concentrados pelo fazer, pelo perceber e por gostarem de fazer e perceber, nesse sentido é também uma emergência do processo. Se o meu processo é desmotivante, não evolui involui, regride, se for estimulante passa a instalar-se como hábito e como tal acontece espontaneamente. E aqui eu penso que a Periodização Táctica apresenta várias vantagens relativamente às restantes metodologias, desde logo permite que os jogadores adquiram algo em concreto fazendo o que gostam, isto é, jogando, e além disso pela tentativa de desenvolvimento concomitante do saber fazer com o saber sobre esse saber fazer faz com que os jogadores se sintam mais implicados e activos na construção do jogar, logo também à partida mais motivados para o fazer, pois sentem esse jogar como parte sua.
35. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da organização em uma equipe de futebol? A organização deve ser rígida ou seja, partindo de uma ordem, ou deve ser flexível partindo de uma desordem?
Jorge Maciel: Olhemos por exemplo para o futebol de rua, o futebol de rua é organizado, porque há algo de organizativo que emerge do facto de estarem em interacção, no entanto, o modo como essa organização se manifesta é o que desejamos?! A vantagem do treino é precisamente essa, permitir dar um sentido ao que emerge, e aí o treinador assume-se como mentor, mas também e não menos importante como catalisador, pois é ele o responsável máximo do processo que vai permitir dar vida ao que inicialmente era apenas uma intenção colectiva sua, se possível complexa e capaz de aspirar a um jogar de qualidade. Para que assim seja devo reconhecer que a riqueza de uma determinada realidade resulta da sua complexidade, a qual é tanto mais rica quanto mais permitir que organização e caos se expressem sem um estar à revelia da outra. A organização deve possibilitar aquilo que o Professor Vítor Frade diz ser o “máximo de regularidade em concomitância com a máxima variabilidade”, portanto admite-se que a desordem é de facto um aspecto essencial para o emergir de uma ordem complexa. Se a minha organização contemplar esta necessidade, sem perda de identidade e funcionalidade, ela estará mais preparada para dar respostas aos contextos altamente instáveis que caracterizam a essência do jogo de futebol, ainda que o façam suportadas num referencial organizativo que procura sobredeterminar tal imprevisibilidade. O jogar de qualidade tem a ver com a necessidade de eu permitir que o caos seja determinístico, e isso só é possível se a desordem ou caos for circunstancial, manifesto a nivel de pormenor sendo por isso necessariamente sobredeterminado pela ordem global do sistema. O jogar de qualidade tem de ser o suficientemente permeável para contemplar o novo e a diferença, pois só assim o sistema evolui qualitativamente, mas tem que simultaneamente ser selectivo nessa permeabilidade. E é tanto mais selectivo nessa permeabilidade quanto mais coerente e consistente forem os pilares que suportam a organização colectiva e o processo que lhe permite manifestar-se. Ou seja, subjacente à desordem aparente manifesta por um jogar tem de haver uma ordem “escondida” como diria o Stacey. Uma espécie de pano de fundo ou de plataforma em torno do qual tudo o resto se deve manifestar, e que é composto por princípios simples mas de expressão regular capazes de conferir consistência ao sistema e de potenciar a possibilidade de emergência de irregularidades, que se assumem como acrescentos qualitativos por estarem sobretdeterminados por essa ordem mais global. O caos que cada jogar abarca, deve apenas representar um modelo de desordem ao nivel do pormenor, o qual emerge ou deve emergir dentro de uma ordem global assente em princípios simples que se manifestam como regularidades. Importa salientar que também a este nível eu devo ter em consideração o contexto, e ponderar os graus de liberdade que o meu jogar e o processo que lhe dá vida deve ter. Eu tenho de perceber que numa determinada realidade, pela qualidade e inteligência dos jogadores eu deixo a coisa andar com interferências mínimas e com identificação com os princípios gerais e a coisa cresce e cresce bem. Nesses casos os princípios são de facto princípios, um referencial geral de base que depois eles concretizam de forma autónoma respeitando o devido critério que este contempla. No entanto, há casos em que os princípios poderão ter que ser mais fechados ao nivel do pormenor, quanto maior a necessidade que eu vou tendo para os fechar ao nível dos níveis menores, mais determinístico se tornará o jogar, mas por vezes esse poderá ser um mal menor. Não obstante, eu devo partir sempre do pressuposto que os jogadores são capazes de tudo, ou seja, me permitem que partindo do que eles manifestam a minha concepção pode ser concretizada. Quando reparo que não é bem assim, aí tenho que fechar, mas nunca o devo fazer à partida, porque se o fizer poderei perder coisas úteis que à partida desconhecia e não estava à espera, mas que naquele contexto são muito úteis e se justificam. Em suma, parto sempre para o processo em que o princípio é isso mesmo, um ponto de partida, mas tenho de ter sensibilidade para perceber se ele pode, na continuidade ser nutrido por esse pressuposto sem que eu perca o rumo que quero, ou se pelo contrário o princípio passa a ter que ser um fim para que eu não perca o rumo. E há vários aspectos que motivam a necessidade do princípio, a nível de pormenor, passar a ser um fim, por exemplo a não capacidade, pela habituação, dos jogadores se orientarem por determinados referenciais posicionais ou de interacção, a não existência de tempo e simultânea necessidade de vencer. Por exemplo se chego a uma equipa onde os referenciais de marcação são individuais e eu quero que eles joguem num padrão defensivo zonal, inicialmente os princípios vão ter que ser muito mais fins, porque eu tenho que lhes dizer com pormenor o que quero e não raras vezes como quero, posteriormente quando a identificação com o que quero é maior, ou em casos em que a equipa já tem uma habituação a jogar dessa forma, os princípios são-no de facto e eu já não digo como quero, pois é suficiente dar-lhes pistas sobre como quero e eles chegam lá.
O futebol de rua é organizado, porque há algo de organizativo que emerge do facto de estarem em interacção, mas a vantagem do treino é permitir dar um sentido ao que emerge, e aí o treinador assume-se como mentor, mas também e não menos importante como catalisador, pois é ele o responsável máximo do processo que vai permitir dar vida ao que inicialmente era apenas uma intenção colectiva sua.
Continua.
________________________
Grande abraço
Luis Esteves
Nenhum comentário:
Postar um comentário